Ícone do site Misto Brasil

Brasil, país dos santos

Compartilhe:

Texto de Astrid Prange de Oliveira

Caros brasileiros,

“Quero uma igreja pobre para os pobres”. Essa frase poderia ser do papa Francisco, que acaba de completar cinco anos de pontificado. Mas não é. É de outro cristão latino-americano de destaque: o bispo brasileiro Dom Hélder Câmara – que morreu em 1999 e tinha muito em comum com o papa.

Tenho grande admiração por Dom Hélder Câmara. E fico feliz com o fato de o papa atual valorizar os santos da América Latina, que por muito tempo foram esquecidos ou negligenciados. A “opção pelos pobres” da Igreja está de volta, graças ao papa Francisco. Confesso que essa opção soava estranha para mim quando cheguei ao Brasil, em 1989. Não era o governo que tinha que se preocupar com políticas de combate ao desemprego e à pobreza?

Nas minhas visitas às favelas cariocas, aprendi que não era bem assim. No cotidiano brasileiro, a fé em Deus e as orações pedindo força para seguir a vida tinham uma conotação política bem mais forte que na Alemanha.

Uma frase famosa de Dom Hélder diz tudo: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”. A frase vale até hoje. A desconfiança da esquerda persiste. Candidatos desse espectro político continuam sob suspeita de querer desapropriar bens ou causar um caos político e econômico no país.

Dom Hélder considerava a pobreza “uma ofensa a Deus”. Lutava pelos direitos sociais a fim de “evitar nesse país, a existência de sub-cidadãos e brasileiros, de segunda classe”. Numa cidade como o Rio de Janeiro, onde se pode subir de elevador de um bairro luxuoso para uma comunidade carente em poucos segundos, essa “ofensa a Deus” era nítida. E nos anos 90, tinha muita gente que queria mudar isso.

Um deles era Frei Márcio de Araújo Terra. O franciscano morava ao lado de uma pequena capela num dos pontos mais altos da comunidade do Cantagalo. Toda terça-feira à tarde, eu subia até lá com ele e um pequeno grupo de meninos de rua. Fazíamos compras, carregávamos as sacolas nos becos, conversávamos e cozinhávamos juntos. Esses laços me salvaram quando certo dia um grupo de meninos de rua tentou me assaltar em Copacabana. Um deles me reconheceu e disse para os seus companheiros: “Esta não, é amiga.”

Frei Márcio queria criar um clima de solidariedade. Por isso, ele organizava campeonatos de futebol entre os meninos da comunidade e os meninos de rua. E ele conseguiu convencer alguns moradores a “adotar” um desses meninos abandonados e criá-los. Um dos muitos milagres que ele fez.

Eu compartilhava das esperanças do Frei Márcio, que infelizmente faleceu no ano passado. Admirava a modéstia e a coerência dele, que eu não tinha. Porque enquanto eu descia no final da tarde para o asfalto, Frei Márcio ficava lá em cima. Sem ar-condicionado. Sem segurança. E sem telefone.

A partir dessa experiência, cheguei à conclusão que se compreende melhor o Brasil quando se conhece o trabalho pastoral da Igreja Católica nesse país. Porque as pastorais estavam por todos os lados e em todos os cantos do país: pastoral de favelas, pastoral da terra, pastoral da criança, pastoral indígena, pastoral carcerária, pastoral de direitos humanos e muito mais.

Apesar da aceitação do grande trabalho e da população, as pastorais não foram bem vistas pela Igreja no geral, assim como a chamada teologia da libertação. Temia-se que movimentos revolucionários pudessem nascer nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB).

Quando Dom Hélder Câmara se aposentou, em 1985, foi substituído por um clérigo conservador, Dom José Cardoso Sobrinho. A pedido do papa João Paulo 2º, ele “corrigia” a pastoral do antecessor, causando uma evasão enorme dos fiéis na diocese de Recife e Olinda.

As minhas visitas ao Cantagalo também terminaram de um dia para o outro. A capela no morro foi fechada, e o Frei Márcio foi enviado como vigário paroquial a Vila Velha, no Espírito Santo. Depois, ele passou mais de 20 anos em Angola, trabalhando com crianças de rua.

Para mim, ele é um dos muitos santos que existem na América Latina e no Brasil e ainda não foram reconhecidos. Chegou a hora de mudar isso. Com Francisco, a fila está andando. Processos parados por mais de 20 anos foram agilizados nos últimos cinco anos.

Começou com Óscar Romeno, o arcebispo de São Salvador que foi beatificado em 2015 e logo vai ser declarado santo. Agora deveria ser a vez de Frei Márcio, Zilda Arns, Leonardo Boff, Erwin Kräutler e Hélder Câmara. Santo súbito!

(Astrid Prange de Oliveira escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle)

Sair da versão mobile