“Nem pensei em me defender, porque ele era três vezes mais forte do que eu”. Estas são as palavras da jornalista camaronesa Kitty Chrys-Tayl. Ela conhece bem a violência baseada em gênero (VBG), pois era frequentemente espancada e humilhada pelo parceiro. A isso, a Organização das Nações Unidas (ONU) dá o nome de “pandemia das sombras“.
Nos últimos meses, aumentaram os casos de violência, abuso sexual e assassinato de mulheres na África e no mundo. As razões para tal também podem ser atribuídas à pandemia do coronavírus: enquanto mais e mais pessoas adoecem de Covid-19 na África, o número de casos de VBG também aumenta no continente.
Mais casos de violência sexual – No primeiro semestre de 2020, a Libéria registrou um aumento de 50% nos casos de violência de gênero: mais de 600 casos de estupro foram registrados só entre janeiro e junho: em todo o ano de 2018, haviam sido 803.
Na Nigéria, a violência sexual também aumentou durante o confinamento: em junho, os casos de duas jovens estupradas e mortas chocaram o país. Já no Quênia, segundo a mídia local, quase 4 mil estudantes engravidaram durante o fechamento de escolas, supostamente por terem sido estupradas por parentes ou policiais.
Na República Centro-Africana, o aumento foi documentado num relatório da missão da ONU Minusca: em comparação com o mesmo período do ano anterior, ocorreram 27% mais estupros; e em 69% mais casos mulheres e crianças ficaram feridas.
“A situação já era ruim para as mulheres mesmo antes do coronavírus. A pandemia apenas levantou o véu sobre aquilo que não víamos”, disse Jean Paul Murunga, da organização de direitos das mulheres Equality Now (Igualdade Agora), em entrevista à DW. “A pandemia agora está ajudando os governos a abrirem os olhos para a situação real.”
Em maio, o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, disse que “o flagelo da violência de gênero continua a assolar nossa terra, enquanto os homens do nosso país declaram guerra às mulheres”. De acordo com as últimas estatísticas da polícia sul-africana, uma mulher é assassinada a cada três horas. A central de comando da VBG na África do Sul também registrou um aumento na violência contra as mulheres, especialmente durante o confinamento total, de 27 de março a 16 de abril.
Só palavras, nada de ação -Até agora, porém, a luta contra a violência de gênero tem sido travada de forma bastante tímida. Na África do Sul, um Plano Estratégico Nacional está em vigor desde maio, abordando questões como busca de culpados, prevenção, proteção, apoio e tratamento.
Em setembro, foi decidido no estado nigeriano de Kaduna que réus condenados pelo estupro de menores de 14 anos podem ser castrados no futuro. Após protestos, todos os governadores do país declararam estado de emergência por causa da violência de gênero. E no Malaui, o Supremo Tribunal ordenou que a polícia indenizasse 18 mulheres e meninas que foram estupradas e agredidas por servidores de uma pequena cidade.
Com a campanha online I decided to live (Decidi viver), a jornalista camaronesa Kitty Chrys-Tayl faz um apelo aos tomadores de decisão. “O tema ‘sexismo‘ deve ser abordado nas escolas. Para isso, é necessário vontade política, pois trata-se de danos causados pela violência de gênero e pela cultura do estupro.”
Em alguns países, já foram criados órgãos ou emitidas declarações oficiais contra a violência de gênero. Mas uma verba destinada a medidas concretas raramente é incluída no orçamento do governo.
Papel feminino subordinado, tradição patriarcal – E as causas da VBG permanecem intocadas. “Drogas e álcool são as forças motrizes por trás da VBG, mas o problema subjacente é o status inferior das mulheres na sociedade”, disse Lesley Ann Foster, presidente da organização de proteção dos direitos das mulheres Masimanyane Women’s Rights International, da África do Sul.
Ela ressalta que, durante o confinamento imposto pela pandemia do coronavírus, as mulheres ficaram à mercê de seus parceiros. A proibição do álcool, que vigorou temporariamente na África do Sul, até acarretou uma redução nos casos de estupro relatados, mas isso também pode estar relacionado a maiores dificuldades em denunciar os delitos.
“As normas e os padrões sociais são tão frágeis que as mulheres são simplesmente mortas, estupradas, espancadas e descartadas. O país não lida de maneira satisfatória com o tema ou sequer aplica pressão suficiente em prol da igualdade de gênero no país”, disse Foster à agência DW. “Não há respeito suficiente pela dignidade das mulheres, por suas vidas, por sua segurança e proteção”.
Tal avaliação é compartilhada pelo ativista queniano dos direitos das mulheres Murunga: “Historicamente, vários países africanos têm uma tradição patriarcal. Por muito tempo, mulheres e meninas não eram consideradas iguais perante o sexo masculino. Portanto questões que afetam mulheres e meninas demoram mais para ser abordadas.”
Para Murunga, o problema é estrutural: “Quando um governo é composto por homens, eles raramente dão prioridade a assuntos que não lhes dizem respeito diretamente.” Frequentemente, tópicos como infraestrutura, estradas, Forças Armadas e compra de máquinas são o foco, “e não o orçamento para saúde e planejamento familiar”.
Enquanto os governos consistirem apenas de homens, a violência sexual contra as mulheres permanecerá uma “pandemia das sombras”. Agora, acrescenta Murunga, uma coisa é necessária acima de tudo: mais mulheres nos governos da África para falar em nome das mulheres africanas.