A despeito da boa intenção e da atuação da própria bancada feminina, a redação da PEC embute retrocessos
Debates simultâneos que ocorrem no Congresso Nacional, sem a devida transparência e maturação necessárias, modificam pilares importantes do atual sistema eleitoral brasileiro e podem comprometer seriamente o futuro da representação feminina na política do país – num momento em que boa parte do mundo discute medidas para a paridade de gênero.
Alguns detalhes de propostas de emenda constitucional (PECs) que tramitam na Câmara e no Senado – em paralelo a um projeto de lei complementar denso, de 905 artigos, que estabelece um novo Código Eleitoral – apresentam regras divergentes e podem ameaçar a eficácia da política de cotas, com obrigatoriedade para que no mínimo 30% das candidaturas sejam de mulheres.
Especialistas em direito eleitoral consultados pela DW Brasil apontam preocupação com a redação de artigos dessas propostas em tramitação e criticam a falta de transparência dos debates, levantando dúvidas sobre o açodamento com o qual o Congresso quer aprovar novas regras, antes de outubro deste ano, para que possam vigorar já no pleito de 2022.
“Estamos todos muito preocupados com esse fluxo legislativo, com tantas mudanças ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, porque essas proposições não conversam entre si. Elas divergem entre si. E temos um Código Eleitoral vigente de 1965. Por que em 2021 de repente querem mudar tudo? Qual é a urgência disso?”, questiona Ana Claudia Santano, coordenadora geral da Transparência Eleitoral Brasil e professora de direito eleitoral e constitucional. “Esse código não é apenas uma consolidação de regras. Ele muda muitas coisas”, alerta.
Risco de retrocesso
Um dos problemas apontados por mulheres que defendem a ampliação do espaço feminino nos poderes Legislativo e Executivo é que os textos, pelo menos a PEC 18/2021 aprovada no Senado em 14 de julho, recolocam na mesa antigos problemas. A despeito da boa intenção dos parlamentares e da atuação da própria bancada feminina no Senado, a redação da PEC embute retrocessos.
O texto “fixa novas regras para a destinação de recursos em campanhas eleitorais, determinando que cada partido deverá reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas proporcionais de cada sexo”. Eis aí o problema: a expressão “deverá reservar”. Essa expressão já causou problemas no passado, pois os partidos brasileiros, todos ancorados numa visão patriarcal, não são obrigados, com essa redação, a apresentar as candidaturas femininas. Reservar não significa preencher.
Em 2009, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entendeu que a expressão precisava ser modificada e estabeleceu que os partidos têm que preencher as candidaturas com pelo menos 30% de mulheres.
Foi esse entendimento da “obrigatoriedade” que abriu espaço para, anos depois, assegurar que também o financiamento fosse proporcional ao número de candidatos, ou seja, 30% dos recursos dos fundos eleitoral e partidário devem se destinar a candidaturas de mulheres, observando-se, obviamente, a proporcionalidade: se houver 40% de mulheres candidatas, elas recebem 40% de recursos financeiros, por exemplo.
Essa regra amparou também a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2020, para assegurar financiamento proporcional não apenas às candidaturas de mulheres, mas também aos candidatos negros, dos ambos os gêneros.
“O texto do Senado retoma uma fórmula antiga, que não funcionou, que é dizer aos partidos que simplesmente reservem as vagas. Reservar é muito diferente de preencher. É deixar a cota facultativa”, critica a coordenadora da Transparência Eleitoral Brasil.
“No Brasil, a política de cotas demorou muito a ter resultados. Evoluímos pouco de 1995 para cá e chegamos na última eleição com 15% das cadeiras para mulheres na Câmara, o ápice desde a redemocratização. Por isso, qualquer medida que retire a política de cotas é ruim. As cotas existem para tentar mudar uma realidade. Já vimos que o aumento de recursos [para candidaturas femininas] teve impacto no aumento de eleitas, ainda que não seja uma relação causal”, pontua a professora Luciana Oliveira Ramos, integrante do Grupo de Estudos em Direito, Gênero e Identidade da Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP).
Reserva de assentos é tímida e deve coexistir com as cotas
A professora da FGV reconhece que a intenção do Senado de manter a política de cotas e, ao mesmo tempo, definir uma reserva mínima de assentos para mulheres no Legislativo é positiva, mas faz ressalvas. O texto do Senado estabeleceu uma reserva de assentos gradual, começando em 18% das cadeiras nas próximas eleições e chegando a 30% em 2038.
Uma das ressalvas diz respeito aos percentuais de reserva. “Destinar 18% das cadeiras pode parecer imediatamente bom, mas se formos pensar no tempo e no escalonamento, de chegar a 30% em 2038, ou seja, daqui quase duas décadas, isso é muito pouco. A média de representação feminina das Américas é de 32% hoje. Somente daqui a duas décadas estaremos chegando nesta média. A média mundial atualmente é de 25%”, afirma Ramos. Ela destaca, ainda, que as Nações Unidas, na Agenda 5050, preveem a paridade de gênero já em 2030.
“Essa meta de 30% em 2038 vai refletir um enorme atraso da sociedade brasileira. A gente deveria estar almejando mais, 50% de representação de mulheres, e de diversos perfis, negras, indígenas. Vai ficar muito aquém do que se espera e do que é o debate hoje no mundo, que é paridade de gênero. Isso está escrito nos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU”, diz a professora da FGV.
De acordo com Ramos, é preciso, ainda, que essas propostas em tramitação no Congresso não substituam a política de cotas pela reserva de vagas. As duas iniciativas, salienta, devem coexistir.
“Porque só a reserva de assentos não é suficiente para ampliar a representação feminina na política. Apenas reservando assentos a gente perde todo o processo de amadurecimento das instituições, dos atores e atrizes envolvidos no jogo político eleitoral como, por exemplo, a sensibilização de partidos políticos para que de fato lancem candidaturas de mulheres que sejam viáveis e que tenham efetivas chances de se eleger.”
A professora enfatiza, ainda, que outra política importante diz respeito ao financiamento e destinação de recursos públicos para candidatas mulheres e negras. “Não basta só colocar o nome dessas pessoas na lista, o importante é fortalecer essas candidaturas de fato.”
“Não há risco algum”, diz relatora do Código Eleitoral
Para a deputada Margarete Coelho (PP-PI), relatora do Código Eleitoral, “o texto consolida os avanços conquistados pela bancada feminina tanto na Câmara quanto no Senado, como a cota de candidaturas e de financiamento para mulheres, entre outras questões novas. Nossas conquistas estão garantidas e estamos propondo novos avanços, para que tenhamos cada vez mais mulheres na política“, disse ela, em mensagem enviada à DW Brasil.
A manutenção das cotas de candidaturas femininas é defendida pela parlamentar. “As cotas de candidaturas são conquistas ainda essenciais, embora não sejam suficientes. É preciso que os partidos estimulem a formação de novas lideranças femininas, sobretudo financeiramente. O fim das cotas viria acompanhado do fim do financiamento mínimo de candidaturas femininas, o que nenhuma parlamentar aceitará. Qualquer proposta nesse sentido é um retrocesso inaceitável”, afirmou.
No entanto, outra proposta em tramitação, a PEC da Reforma Política, já aprovada em dois turnos na Câmara e aguardando a votação no Senado, especifica percentuais distintos de reserva de vagas para mulheres, eliminando as cotas.
O texto aprovado prevê a contagem em dobro dos votos dados a candidatas e a negros, a partir das eleições de 2022. Essa regra seria usada para calcular a fatia de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (Fundo Eleitoral) para essas candidaturas.
Para as professoras de direito, o texto da PEC da Reforma Política foi aprovado às pressas, com inúmeras mudanças, sem debate e pode, sim, revogar por completo a política de cotas, o que seria um risco. Seria mais razoável, reconhece a deputada Margarete Coelho, manter a política de cotas combinada com a reserva de assentos. Segundo ela, a proposta do Senado, neste sentido, parece mais avançada.
“Enquanto a paridade não vem, temos que construir um degrau após o outro da escada que nos levará a um parlamento mais inclusivo. A reserva de cadeiras é um passo essencial para a garantia de uma representação mínima, o que, ao lado da manutenção da cota de candidaturas, permitirá que mais mulheres sejam alçadas à condição de protagonismo político.”