Otelo, de William Shakespeare, foi consumido pelo ciúme. A transformação digital mudou a forma de amarmos?
Por Charles Machado – SC
Uma das mais instigantes tragédias de Shakespeare, talvez seja, “Otelo, o Mouro de Veneza”. Uma série de valores presentes nesse momento social, onde as redes parecem dar o tom e as cores de muitas relações, que são impulsionadas por ciúme, traição, amor, inveja e racismo fazem da peça um debate pra lá de atual.
Estreando em 1604, o texto leva para os palcos um casamento inter-racial entre Otelo, um general mouro a serviço do reino de Veneza, casado com Desdêmona, moça de pele clara e filha de um rico senador. Eles se uniram às escondidas e o genro só é aceito pelo sogro porque o casamento já está consumado. Se você acha que preconceito é coisa do passado, converse melhor com seus amigos fora da bolha.
Os sinais de racismo, que escutamos em muitas rodas sociais dos prisioneiros das bolhas do ódio, também permeiam o texto, ao longo de toda peça, como em falas de Iago, inimigo secreto de Otelo….
O preconceito, nauseante, que em tempos de extremos ganha as tintas de diferença (racismo e intolerância pode ser pintado de qualquer forma, mas nunca vai deixar de ser o que é, vindo da boca de racistas).
No cinema a peça teve muitas versões, uma muito boa é de 1995, de Oliver Parker. Otelo é interpretado por Laurence Fishburne, e quem dá vida a Iago é o ótimo Kenneth Branagh, disponível no Amazon Prime entre outros.
A obra de Shakespeare pode render ótimas discussões sobre aparência e realidade. A começar por Iago, um dos maiores vilões da literatura. Ele é chamado de honesto diversas vezes por diferentes personagens, Qualquer semelhança com os “cidadãos de bem, e homens de família” não será mera coincidência, pois fascistas são ótimos em se esconderem atrás de bandeiras dissimuladas de boa intenção.
Iago, como todo racista e fascista, é pérfido, maquiavélico e sem limites. Finge lealdade a Otelo, apesar de odiá-lo. Isso porque o general promoveu o soldado Cássio ao cargo de tenente, preterindo-o. Esses hipócritas adoram um privilégio e uma facilidade.
O fato despertou em Iago uma inveja devastadora e seu grande objetivo passa a ser a destruição de Otelo. Movido por esse sentimento sombrio, ele tece intrigas que fazem o protagonista acreditar que sua esposa o trai com Cássio.
Não há provas, apenas insinuações, que vão envolvendo o general, enlouquecendo-o aos poucos, como hoje entorpecido pela estética das redes sociais. Cego de ciúme, Otelo mata Desdêmona e só depois descobre que ela era inocente. Então, cheio de culpa, ele se mata.
O personagem Otelo também permite essa análise. No início, ele se mostra um homem forte, viril e seguro, que acredita nos sentimentos de sua amada. Mas logo é facilmente dominado pelo ciúme e revela suas fraquezas internas, afinal o ciúme lança sua flecha negra no universo mental das dúvidas e suspeitas.
O pai de Desdêmona, senador e figura de destaque na sociedade, também mascara seus reais valores. Se a princípio exalta Otelo como líder guerreiro, em seguida o ridiculariza pelo “negrume de seu peito”, quando ele se torna marido de sua filha.
No mundo atual, qual é o peso da aparência? Levamos muito a sério a opinião dos outros a nosso respeito? As postagens nas redes sociais transmitem a imagem do que realmente somos?
Até que ponto sentir ciúme pode ser considerado normal? O desequilíbrio do personagem shakespeariano inspirou o nome de um distúrbio: a síndrome de Otelo. As pessoas com essa doença sofrem com o delírio de que seus parceiros são infiéis.
O amor em troca de curtidas
A transformação digital mudou a forma de amarmos? Quantas curtidas você precisa da pessoa amada? Qual o comentário que ele deixou de fazer no seu último post?
Quem pode curtir as publicações da sua pessoa amada? Toda curtida nas publicações dela representam uma ameaça à sua relação? Qual a intervenção digital pode representar maior risco ao seu relacionamento?
E logo uma curtida de um ou de outro, parece fuzilar a relação construída em milhares de minutos de entregas e cumplicidade de corpo e alma.
Tudo nesse novo universo parece diminuir a entrega física, em prol da comunicação digital, e logo as caminhadas compartilhadas, cafés compartilhados e todos os minutos da entrega de amantes parece se desmanchar nas suspeitas de uma publicação, de uma curtida ou de uma não curtida.
Afinal qual o significado de cada publicação? O que cada publicação pode dizer de você? Se está disponível? Se está feliz e fazendo a vida seguir após o término? Se está magoado e não consegue ultrapassar a mágoa? Se comprou uma nova roupa e expô-la em rede social lhe faz bem?
Não importa as razões e as não razões, o universo interpretativo dos nossos gestos em redes sociais é certamente mais amplo do que possa imaginar o mais criativo dos escritores.
Em maior ou menor grau, as novas gerações são amplamente tocadas por novos padrões relacionais, e logo o edifício da insegurança dá espaço a edificação da liquidez, onde muitos dos declarados maiores amores de nossas vidas, são incapazes de compreender as fragilidades do outro, ou de se deixar dominar por um padrão estético feito para os aplicativos de atenção.
Como se a simples curtida fosse efemeramente um sinal de afeto ou concordância?
Nesse mundo cada dia mais digital, ver e encontrar quem amamos será sempre uma necessidade e não importa o que as curtidas ou comentários das esdrúxulas redes sociais digam, é preciso querer mais do que um post ou uma fotografia.
Não existe uma fórmula perfeita para as relações darem certo, mas com certeza a pressa, o atropelar de etapas o aprisionamento estético e conceitual, ditado pelos padrões das redes sociais é o melhor caminho para o fracasso.