E essa falta de responsabilização pelos crimes cometidos durante a ditadura tem consequências que reverberam até os dias de hoje
Por Clarice Binda – DF
A história do Brasil foi marcada profundamente pelo golpe militar de 1964, que deu início a uma ditadura de 21 anos. Esse período ficou conhecido pela repressão política, censura, perseguição a opositores, torturas e desaparecimentos forçados.
Paraguai, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai, Argentina, em meados dos anos 1970, boa parte da América do Sul estava mergulhada em ditaduras militares.
Contudo, ao contrário de outros países que enfrentaram regimes autoritários, a forma como o Brasil enfrentou os crimes cometidos pelo Estado e como se deu o processo de desmilitarização da política não foi através de um processo amplo e consistente de responsabilização.
E essa falta de responsabilização pelos crimes cometidos durante a ditadura tem consequências que reverberam até os dias de hoje, impactando o sistema político, a cultura de direitos humanos e a percepção social sobre justiça.
A historiadora argentina Marina Franco, co-organizadora do livro Ditaduras no Cone Sul da América Latina (editora Civilização Brasileira), publicado em 2021, mostra a diferença de tratamento dos crimes da ditadura pela Argentina e o Brasil.
A Argentina foi um dos poucos países a revogar a lei de anistia que os militares aprovaram antes de deixar o poder, levou à prisão perpétua o general Jorge Rafael Videla, que governou o país entre 1976 e 1981, e condenou mais de 1 mil pessoas em quase 300 sentenças por crimes relacionados ao terrorismo de Estado.
Já o Brasil seguiu o lado oposto. A lei de anistia sancionada em 1979 pelo regime militar segue em vigor e foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010. Isso quer dizer que a grande maioria dos civis e militares envolvidos nos crimes durante o período não pode ser julgada.
A historiadora constata, nas suas pesquisas, o Brasil como um caso “extremo” da chamada justiça de transição, sendo o que menos investigou, julgou e puniu crimes da ditadura.
Essa opção do Brasil por uma transição negociada que preservou os privilégios e a imunidade dos militares nos levou até o grave episódio recém relatado pela Polícia Federal que foi a tentativa de golpe de Estado nas últimas eleições presidenciais, envolvendo a cúpula do governo federal que não aceitara o término do seu mandato em 2022.
Privilégios e direitos humanos
Mas o pano de fundo dessa tentativa de golpe pelo governo anterior, que teve no seu núcleo de organização a presença de militares, era a narrativa oficial que minimizou os abusos da ditadura, perpetuando a ideia de que as ações repressivas eram necessárias para conter um suposto “perigo comunista”.
Assim, se o tal “perigo” se elegeu democraticamente, ele teria que ser alvo de toda e qualquer (re)ação, porque no ideário daqueles que defendem a ditadura, seria necessário para combater esse grande mal que é o “comunismo”.
As conversas gravadas no inquérito policial e divulgadas pela imprensa são esclarecedoras quanto a esse pensamento fixo.
Isso sem falar na violência estatal que as pessoas negras, pobres e periféricas do Brasil são alvo diariamente. A naturalização das violações de direitos humanos ocorridas durante o regime de exceção, com a não responsabilização dos seus agentes, contribuiu para a perpetuação de práticas repressivas por parte de forças de segurança.
A violência policial, as execuções extrajudiciais e o desprezo pelos direitos humanos podem ser vistos como ecos da lógica instaurada durante a ditadura, onde o Estado usava da força para manter o controle, sem temor de punição. As notícias diárias dos jornais nos mostram essa herança brasileira.
Os efeitos da ausência de punição aos militares do golpe de 1964 são evidentes na fragilidade das instituições democráticas brasileiras até aqui. No entanto, o momento atual, com a investigação de uma tentativa de golpe de Estado recente, dá a oportunidade das instituições brasileiras mudarem a história desse país.
A não responsabilização pelos golpes de Estado não é mais apenas um problema histórico, mas uma questão presente e que ameaça o futuro democrático do país.
O reconhecimento e o enfrentamento pelo sistema de justiça é fundamental para consolidar uma sociedade onde os direitos fundamentais sejam respeitados. Sem justiça e memória, o Brasil permanecerá vulnerável ao retorno de práticas autoritárias e à erosão dos valores democráticos.