Conjur, IDP e um processo trabalhista

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Texto de Lucas Ferraz, da Agência Pública

Acesso a ministros dos tribunais superiores de Brasília em troca de patrocínios para eventos jurídicos realizados dentro dos tribunais. Assessoria de comunicação a empresas e escritórios de advocacia de forma que a atividade seja utilizada em favor do cliente em “julgamentos” e para “formar o convencimento de juízes”. Alguns dos bastidores pouco conhecidos do Poder Judiciário, um dos mais fechados do país, são descritos em uma ação em trâmite na Justiça do Trabalho.

Até o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, tem nos autos um e-mail reproduzido em que ele trata com o empresário e jornalista dono das empresas alvo do processo, Márcio Chaer, de projetos da instituição de ensino na qual é um dos sócios, o Instituto de Direito Público (IDP).

A ação trabalhista, iniciada em 2014 e perto de ser concluída, foi proposta por Ana Cláudia Pessoa, que trabalhou por 16 anos com Chaer na empresa Dublê Editorial, responsável pelo site especializado Consultor Jurídico, e na Original 123, que também pertence a Chaer e oferece serviços de assessoria para empresas e escritórios de advocacia. As duas funcionam no mesmo prédio, em São Paulo.

Ana Cláudia começou a trabalhar na empresa como secretária, sendo depois transferida para o cargo de gerente administrativa, quando passou a fazer parte do quadro societário da Dublê Editorial. A prática, comum nos escritórios de advocacia, foi denunciada pelos advogados ao Ministério Público do Trabalho.

Ela alega que seu vínculo com as empresas sempre foi de empregada e que ao deixar o trabalho, em 2012, não recebeu a indenização conforme lhe era de direito. Os e-mails e demais documentos anexados na petição, segundo os advogados, foram reproduzidos para comprovar a condição da cliente como subordinada, e não como uma das sócias-proprietárias.

Os e-mails revelam temas que vão além da questão trabalhista. Eles mostram, por exemplo, como são organizados eventos da empresa na cúpula do Judiciário. É o caso do lançamento do Anuário da Justiça, publicação produzida pelo Consultor Jurídico e que faz uma espécie de raio-x do Judiciário (tanto dos tribunais superiores quanto dos federais e regionais), realizado em órgãos como o STF e o TSE. Um deles também expõe a relação entre Márcio Chaer e o ministro Gilmar Mendes, que são amigos íntimos.

O empresário, um dos responsáveis pelo início do namoro de Gilmar com a atual mulher, Guiomar Feitosa, recorre ao seu site em várias ocasiões para atacar reportagens ou jornalistas que expõem fatos negativos ao ministro.

A mensagem reproduzida na ação trabalhista é de abril de 2010: Gilmar utiliza seu e-mail oficial do STF para solicitar que o amigo promova novos produtos do IDP que estavam para ser lançados.

“Márcio, precisamos pensar em organizar as ofertas do curso e das demais publicações da série IDP. O livro agora veio com um CD, com jurisprudência e problemas para serem resolvidos”, escreve o ministro.

Chaer responde minutos depois, com cópia para Ana Cláudia, Dalide Corrêa, funcionária do IDP, e uma terceira pessoa: “Essa semana damos jeito nisso. Estou respondendo com cópia para Ana e Alessandra para resolver isso”.

Procurado, Gilmar Mendes afirmou via assessoria de imprensa que “não é nem nunca foi administrador do IDP”. “O ministro é autor de livros e a conversa foi no contexto de divulgação de suas obras”, respondeu.

A relação entre eles também é comercial. A assessoria de imprensa do IDP de São Paulo está sob a responsabilidade da Original 123, que também assessora o advogado Pierpaolo Cruz Bottini, um dos advogados dos irmãos Joesley e Wesley Batista, da JBS, que serão julgados no STF. À época do e-mail, contudo, o IDP de São Paulo ainda não havia sido criado.

A atual crise em torno da delação da JBS evidenciou uma das destinatárias do e-mail entre Chaer e o ministro: Dalide Corrêa, braço-direito de Gilmar no IDP e diretora-geral da escola de 2000 até o mês passado, quando se desligou da empresa. Ela foi citada em reportagem da Veja como uma das interlocutoras da escola com a JBS e responsável por tratar dos patrocínios da gigante da carne à instituição.

Segundo a Veja, Dalide procurou advogados ligados à JBS preocupada com a possibilidade de a delação dos executivos da empresa comprometer Gilmar e ela própria. Dalide, segundo o próprio ministro do STF, intermediou um encontro entre ele e Joesley Batista, no início do ano, ocasião na qual Gilmar diz ter certeza que foi gravado pelo executivo da JBS. O ministro pediu à Polícia Federal para investigar as citações feitas a ele na reportagem da revista.

A atuação de Gilmar Mendes como sócio do IDP tem gerado muitas críticas — a Constituição, no seu artigo 95, diz que aos juízes é vedado exercer outro cargo ou função, exceto a de magistério; a Lei Orgânica da Magistratura, por sua vez, dispõe que o juiz não pode “exercer o comércio, exceto como acionista ou quotista”.

“Na prática, Gilmar Mendes está a frente das principais atividades do IDP: dos eventos, dos congressos, dos cursos vendidos ao poder público, das publicações”, afirma Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP e, na academia, um dos principais críticos da atuação do ministro.

“Um bom exemplo: quando Joesley teve um encontro com Gilmar Mendes, meses atrás, foi para tratar de patrocínio a eventos do IDP. Sabe-se que a J&F [controladora da JBS] já gastou mais de R$ 2 milhões com patrocínio ao IDP. Se Gilmar Mendes fosse mero acionista do IDP, afastado de sua gerência, não estaria negociando patrocínio. Portanto, não é só ilegítimo, é também ilegal que ele tenha essas relações”, completou.

Márcio Chaer não quis se manifestar sobre o assunto. “Se vocês acham que vingança por conta de relação fracassada é pauta, realmente, a visão de vocês sobre o que é jornalismo tem algo de errado”, disse, afirmando que a ex-funcionária é sua “ex-mulher”. “A ação trabalhista é por vingança. A venda de livros é uma fonte de renda do site. Os livros do ministro estão entre as 5.800 obras que divulgamos para poder custear o jornalismo”, afirmou sem comentar a relação com o ministro. Em vez disso, preferiu questionar “de onde vem o dinheiro que os financiadores repassam à agência Pública“.A petição da defesa de Ana Cláudia Pessoa é assinada pelos advogados Cláudio Batista dos Santos e Felix Soibelman (este o atual marido dela). “Não sou ex-mulher de Márcio Chaer. A ação que movo contra ele tem como objetivo obrigá-lo a pagar o que me deve depois de ter trabalhado por 16 anos para as empresas dele”, respondeu ela.

Público e o Privado – A antiga relação entre o ministro do STF e o jornalista já rendeu polêmicas, inclusive dentro do STF. O lançamento do Anuário, que costuma acontecer nas dependências dos tribunais superiores de Brasília, já levou o ex-ministro do Supremo Joaquim Barbosa a considerar a prática um “escândalo”. A crítica diz respeito à confusão entre o público e o privado: uma empresa tem o privilégio de promover seu produto dentro dos tribunais.

Neste ano, a edição do Anuário da Justiça do Brasil foi lançada num coquetel que reuniu mais de 300 pessoas na sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido por Gilmar Mendes. Além dele, prestigiaram o evento outros sete ministros do STF, além de integrantes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ministério Público, muitos advogados e empresários.

Além de empresas, a publicação é custeada também por escritórios de advocacia, quase todos com atuação em cortes como o Supremo. Em 2010, ao ser indagado sobre esse aspecto em reportagem da revista Piauí, Chaer respondeu que “isso não quer dizer absolutamente nada”.

Os advogados afirmam na ação que é “no mínimo constrangedor” que o empresário “comercialize” sua proximidade com magistrados dos tribunais superiores. Em sua atuação, mistura-se uma empresa de assessoria e um site jornalístico, ambos especializados no mundo jurídico. Não é raro que o segundo divulgue informações do interesse dos clientes da primeira, como já aconteceu e foi registrado na petição pelos advogados. O empresário se refere ao serviço prestado pelo Consultor Jurídico como de “utilidade pública”.

Um dos exemplos citados no documento é um pedido de patrocínio, no valor de R$ 50 mil, enviado por e-mail pelo empresário à empreiteira Camargo Corrêa para o lançamento do Anuário da Justiça do Trabalho no ano de 2012. Ele escreve a Marcelo D’Angello, diretor de comunicação da empresa, argumentando que a média de recursos trabalhistas da construtora é inferior à média nacional. “Confessa: o argumento é bom, não é?”, diz Chaer. “Estou em busca de patrocínio para o coquetel e oferecendo como contrapartida, logo no convite, direito de enviar anuários com carta própria para quatro TRTs e ministros do TST, mais lugar na sala VIP com os ministros enquanto o evento não começa”, finaliza.

A Camargo Corrêa não patrocinou aquele evento, mas fez parte do grupo de escritórios de advocacia e empresas que contribuiu financeiramente para a edição do Anuário da Justiça do Brasil daquele ano.

No processo, há ainda a transcrição de propostas enviadas nos últimos anos para empresas como Brasil Telecom, Bradesco e Souza Cruz. O empresário promete “oferecer subsídios e argumentos técnicos que possam ser usados em favor” dos clientes no “meio judicial, seja em julgamentos, seja para formar o convencimento dos juízes”.

Defesa do amianto – A petição descreve também a atuação das empresas na defesa da indústria do amianto, componente usado para a produção de telhas e caixa-d’água que organizações de saúde apontam como cancerígeno — o Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda permitem o seu uso. Em julgamento recente, o STF praticamente derrubou a regulamentação do amianto no país, mas o caso ainda não terminou: outras ações em curso no tribunal ainda serão analisadas.

E-mails de 2009 reunidos por Ana Paula Pessoa mostram que a empresa de Márcio Chaer intermediou a publicação de anúncios em jornais de circulação nacional defendendo o uso do amianto. A propaganda foi bancada por instituições como Comissão Nacional dos Trabalhadores do Amianto (CNTA), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) e Instituto Nacional da Crisotila (IBC).

Para os advogados, a atuação pró-amianto fica evidente também no site Consultor Jurídico, que costuma tratar do tema como “questão puramente econômica, em detrimento da questão da saúde”.

“Espera-se que um jornalismo especializado no meio forense espelhe a imparcialidade dos Tribunais, ou, ao menos, não maneje esta proximidade para veicular teses que sejam de interesse próprio ou de seus clientes de assessoria de imprensa (Original 123)”, escrevem Cláudio Batista dos Santos e Felix Soibelman.

Questionado sobre esses pontos por telefone e por e-mail, o empresário Márcio Chaer não respondeu.

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