Texto de Astrid Prange de Oliveira
Caros brasileiros,
A escola como campo de batalhas ideológicas? É significativo que justamente a iniciativa alemã “escola neutra”, que diz pretender combater o extremismo politico em instituições de ensino, promova uma polarização nada neutra entre alunos, pais e professores.
A iniciativa foi lançada em setembro do ano passado pelo partido populista de direita AfD, a Alternativa para a Alemanha. Ela é uma espécie de “escola sem partido” alemã. No portal, pais e alunos podem denunciar, de forma anônima, supostas propagandas políticas ou partidárias de professores ou alunos na escola.
Esta semana, na cidade de Hamburgo, alunos e pais de uma escola chamada Ida Ehre Schule deram um xeque-mate nos organizadores da iniciativa. Escreveram e publicaram uma carta de protesto endereçada à Secretaria de Educação. E fizeram uma grande manifestação junto a alunos e pais de outras escolas.
A Ida Ehre Schule ganhou destaque por supostamente simpatizar com grupos de esquerda e assim cometer “uma infração” contra a neutralidade política. “Extremistas de esquerda agem à vontade na escola“, era a manchete do maior jornal de Hamburgo. Segundo a reportagem, que se baseou em uma denúncia do portal “escola neutra“, existia um “área antifascista” dentro de uma sala de aula na escola.
Nessa “área antifascista”, haveria um mural com adesivos de um grupo antifascista do bairro, e outros adesivos criticando e insultando o partido AfD. Além disso, segundo a denúncia, nos corredores da escola haveria cartazes com lemas esquerdistas como “Siamo tutti Antifascisti” (somos todos antifascistas) e “A.C.A.B” (“all cops are bastards”, todos os policiais são desgraçados).
O chefe da bancada da AfD em Hamburgo, Alexander Wolf, comemorou o “coup”: “O caso mostra de forma impressionante como esquerdistas espalham a sua ideologia e recrutam alunos. Os professores parecem não ter consciência disso, ou pior, praticam conivência com uma ideologia anticonstitucional da extrema esquerda.”
A comemoração durou pouco, pois a versão veiculada pelo partido AfD foi desmentida. Uma visita oficial à escola revelou que os cartazes supostamente antifascistas não foram achados. Os adesivos no mural na sala de aula foram encontrados, sim, mas não eram propaganda política. Eles faziam parte de um projeto que tratava das eleições para o Parlamento Europeu em maio deste ano. Os pais haviam sido informados sobre o projeto.
Além disso, a Secretaria de Educação de Hamburgo teve que admitir que não houve nenhum contato com os professores responsáveis pelo projeto nem com a diretoria da escola antes da vistoria. Os representantes da Secretaria de Educação resolveram “visitar” a escola espontaneamente durante a época de férias.
Sinceramente: as escolas na Alemanha não tem problemas maiores que uma suposta conivência com extremistas – sejam eles de esquerda ou da direita? No Brasil, certamente elas têm. Falta merenda, água encanada, faltam professores e material didático.
Na Alemanha também, a falta de professores faz com que aulas frequentemente sejam canceladas. “O portal ‘escola neutra’ é inútil e não tem relevância nenhuma”, diz a associação de diretores e diretoras de escolas berlinenses. “Quem quer reclamar de agitação política na sala de aula, já pode queixar-se na Secretaria de Educação”, disse a presidente da associação, Astrid-Sabine Busse. “Nós não temos tempo para essas manobras insignificantes.”
Seis meses depois do primeiro lançamento da “escola neutra”, até o próprio idealizador, o partido AfD, concorda que a grande maioria das escolas na Alemanha respeita a neutralidade política obrigatória. Isso é o resultado de uma sondagem do jornal alemão Die Welt nos estados de Berlim, Saxônia e Saxônia-Anhalt. “A grande maioria dos professores trabalha muito bem”, disse o porta-voz da bancada da AfD para educação na assembleia estadual da Saxônia-Anhalt, Hans-Thomas Tillschneider.
Tenho que decepcionar então os leitores que, no Twitter, por exemplo, escreveram que “no Germanistão há uma espécie de Escola Sem Partido”. Há sim, mas a “lavagem cerebral/doutrinação/impregnação” descrita não existe.
Aliás, o princípio constitucional da neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado que ambos preveem, a Constituição brasileira e a alemã, não isenta os professores da defesa de valores democráticos. Neutralidade é um dever. Rechaçar afirmações de políticos como Alexander Gauland, líder da bancada da AfD no Parlamento alemão, que disse que “Hitler e os nacional-socialistas não foram mais do que cocô de pássaro em mil anos de uma historia alemã de sucesso”, também.
Neutralidade é um dever. O exercício do debate democrático também. Espero que a “Escola sem partido”, como as “escolas neutras” na Alemanha, seja considerada o que ela é: inútil.
( Astrid Prange de Oliveira trabalha na Deutsche Welle)