Texto de João Almeida Moreira
O guru está contra o vice, os generais estão contra o guru, os filhos estão contra os generais, uns evangélicos estão contra o guru, outros evangélicos estão contra o vice e o deputado ex-ator pornográfico está contra quase toda a gente. Nas últimas horas, a ruidosa guerra entre as principais alas que compõem o governo Bolsonaro, a pragmática e a programática, e as suas subsidiárias atingiu o ápice.
No fim de semana, o canal do YouTube de Jair Bolsonaro, cujo conteúdo, segundo o próprio, é administrado pelo presidente e por pessoas muito próximas, partilhou um vídeo de Olavo de Carvalho, escritor de best-sellers, filósofo amador e ex-astrólogo considerado o guru da nova direita brasileira e a representação da ala programática do governo, a criticar frontalmente os militares, que chefiam seis ministérios e ocupam a vice-presidência.
“Qual foi a última contribuição das escolas militares para a alta cultura nacional? As obras do [escritor e tenente] Euclides da Cunha. Depois de então foi só cabelo pintado e voz empostada. Cagada, cagada. Esse pessoal subiu ao poder em 1964, destruiu os políticos de direita e sobrou o quê? Os comunistas (…) Os milicos [calão para militares] têm de começar por confessar os seus erros antes de querer corrigir os erros dos outros. Essa é a lei de Cristo. Primeiro os teus pecados, depois os do vizinho. Mas, no Brasil, não, todo o mundo é assim: “Somos os patriotas, os heróis, salvamos o Brasil do comunismo, nós isto, aquilo. Tudo conversa mole. Quem salvou o Brasil do comunismo foram as lideranças civis em 1964”, disse Olavo.
E censurou, na sequência, a influência da ala militar, chamada de “pragmática”, em Bolsonaro. “Só de aguentar esses filhos da puta que há em volta dele… Não dá, não dá.”
O vice-presidente Hamilton Mourão, general do Exército, e supostamente principal destinatário das críticas, reagiu no dia seguinte à divulgação do vídeo. “Eu acho que ele se deve limitar à função que ele desempenha bem, que é a de astrólogo. Ele pode continuar a prever as coisas, que ele é bom nisso”, disse, ironizando uma das atividades anteriores do guru. Segundo o vice, “Olavo perdeu o timing, não está entendendo o que está acontecendo no Brasil”.
Mourão acrescentou ainda que acredita que Bolsonaro não soubesse o conteúdo do vídeo divulgado pelo seu canal.
Ainda antes da tréplica na terça-feira de Olavo, a chamar Mourão de “adolescente desqualificado“, já Carlos Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro, segundo filho do presidente e responsável oficioso pelos conteúdos online do pai, intensificara o combate. Além de partilhar o vídeo do ex-astrólogo, ainda usou o Twitter para escrever “este jogo está muito claro (…), se não visse, não acreditaria que aceitou este convite com tais termos”. A acompanhar a frase, o teor de um convite para Mourão discursar nos EUA, que este aceitou, em que se destacava a confusão dos primeiros cem dias de governo e a voz “de razão e moderação capaz de orientar a direção em assuntos nacionais e internacionais” do vice-presidente.
Horas depois, Carlos voltou à carga lembrando que “o tal de Mourão disse que aquilo era tudo vitimização”, a propósito da facada sofrida pelo pai no dia 6 de setembro, na cidade de Juiz de Fora.
Mourão reagiu. “A minha mãe sempre dizia, quando um não quer, dois não brigam, essa é a minha linha de ação”, afirmou. Sobre o silêncio do presidente afirmou que “ele aguarda, né, porque filho é filho…”.
Já ontem, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, terceiro filho de Jair, veio a público defender tanto Olavo como o irmão Carlos. “Na verdade, o Carlos está só reagindo, quem faz ruído é o vice-presidente, com sucessivas declarações contrárias ao presidente da República. Olavo? É uma grande referência.”
Dada a escalada de ataques a Mourão, reiniciada após o vídeo publicado no fim de semana, o próprio Jair Bolsonaro emitiu nota, pela primeira vez, crítica ao filósofo amador. “As suas recentes declarações contra integrantes dos poderes da República não contribuem para a unicidade de esforços e consequente atingimento de objetivos propostos em nosso projeto de governo”, disse o porta-voz do Planalto Rego Barros, um general.
Afirmou ainda Barros que, “de uma vez por todas, o presidente gostaria de deixar claro quanto aos seus filhos, em particular ao Carlos, que ele estará sempre a seu lado, que ele foi um dos grandes responsáveis pela vitória nas urnas contra tudo e contra todos e que é sangue do seu sangue”.
Como base para a revolta da ala programática – também chamada, em tom depreciativo, de “ala psiquiátrica“, pela excentricidade de parte das duas propostas – está um grupo de posições de Mourão desafinadas das de Bolsonaro.
O presidente prometeu transferir a embaixada brasileira em Israel de Telavive para Jerusalém, mas o vice, numa reunião com diplomatas árabes, negou. Mais tarde disse que não via a facilitação no uso de armas, decretada pelo chefe de Estado, como meio eficaz de combater a violência e condenou a decisão do núcleo duro do presidente de vetar o nome de uma especialista contrária ao armamento para um órgão de aconselhamento porque “o Brasil perde sempre que não se senta à mesa com quem é divergente”.
Afirmou também, fugindo ao tom da campanha presidencial, que o aborto é decisão da mulher, encontrou-se com a comunidade emigrante brasileira nos EUA logo depois de Bolsonaro ter dito que nem todos os seus membros tinham boas intenções, criticou a decisão do chefe de Estado de celebrar o golpe militar de 1964 e rebateu a ideia, expressada por ele, de que o nazismo é de esquerda.
Após oposição de Eduardo Bolsonaro à ida de Lula da Silva a um enterro de um familiar, afirmou que essa saída da cadeia “era questão humanitária” e, a propósito de declarações do presidente dando a entender que o Brasil estaria pronto a entrar num eventual conflito com a Venezuela, disse ao seu homólogo americano Mike Pence que o Brasil não faria nenhuma intervenção militar no país vizinho.
Mourão defende-se dizendo que não é contraponto ao presidente. “Sou complemento.”
Mas nem só aquelas duas alas do governo entram na briga. Outro pilar da eleição de Bolsonaro, o setor evangélico da população, também tem opinião. E nem sempre harmónica. O bispo da denominação Vitória em Cristo que celebrou o casamento do presidente com a primeira-dama Michelle criticou Olavo. “Mourão está corretíssimo! Olavo de Carvalho deveria se ater à função de astrólogo. O resto… só Deus para suportar”, opinou Silas Malafaia.
Mas um dos deputados evangélicos mais controversos, o pastor Marco Feliciano, protagonizou um insólito pedido de impeachment do vice-presidente baseado no facto de Mourão ter apreciado um tweet de um jornalista crítico a Bolsonaro. Em entrevista à revista Época chamou-o de “Judas”, de “traidor” e de “sem carácter”. “O plano dele é roubar a cadeira do presidente”, resumiu o parlamentar que acredita que John Lennon morreu por castigo divino por dizer que os Beatles eram mais famosos do que Jesus.
Além das posições extremadas de pragmáticos e programáticos e da pluralidade da comunidade evangélica, o governo de Bolsonaro ainda está sustentado num grupo parlamentar heterogéneo e inexperiente – a maioria dos deputados do PSL, que passou de um representante na anterior legislatura para mais de 50 na atual, é estreante.
Como, por exemplo, Joice Hasselmann, ex-jornalista acusada de plágio em 60 reportagens, que trocou ofensas em público com Eduardo Bolsonaro, por exemplo.
Mas um dos mais mediáticos estreantes é, necessariamente, Alexandre Frota, ex-ator de novelas e filmes pornográficos. Depois de classificar Onyx Lorenzoni, o titular da Casa Civil e braço-direito do presidente para a área política, de “despreparado”, Frota chamou Olavo de “pastor de seita”, de “velho maluco” e de “chato pra cacete”. O deputado afirmou ainda desejar que “a ala militar tire esse lixo ideológico, prepotente, formado na Virginia [onde reside Olavo] do governo”, referindo-se ao contestado ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, discípulo do ex-astrólogo.
Foi no ministério de um outro indicado por Olavo, o da Educação, que o conflito entre as alas que compõem o governo passou dos insultos aos atos. Ricardo Vélez, também seu discípulo, nomeou “olavetes“, como são conhecidos os apoiantes do guru, despromoveu-os por influência da ala pragmática e voltou a nomeá-los numa guerra que custou a cabeça do próprio ministro, entretanto demitido. Para irritação dos militares, no entanto, Bolsonaro escolheu outro “olavete”, o professor Abraham Weintraub, como substituto.
E a guerra continua.
(João Almeida Moreira trabalha no Diário de Notícias, de Portugal)