Ex-escravo reconhecido como advogado 133 anos depois da morte

ex-escravo Luiz Gama
Luiz Gama foi vítima da elite paulista, mas não deixou de ser um advogado autodidata/Arquivo/Wikipedia
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Quatro anos atrás, mais de 130 anos após sua morte, Luiz Gonzaga Pinto da Gama se tornava oficialmente advogado: em solenidade ocorrida na Universidade Presbiteriana Mackenzie, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) o reconhecia como membro da instituição.

Luiz Gama (1830-1882) nasceu em Salvador. Filho de um descendente de portugueses com uma escrava liberta, acabou vendido aos dez anos como escravo pelo próprio pai, que precisava de dinheiro para pagar dívidas de jogo. A alforria veio aos 17. Como autodidata, ele passou a estudar Direito e, usando as letras da lei, começou a defender escravos.

“Foi o maior advogado da história do Brasil, por conta de sua trajetória, de seu brilhantismo. Era um sujeito que demonstrava capacidade e manejo da tecnicalidade do Direito que são impressionantes até hoje”, elogia o jurista Silvio Luiz de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama e professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Conforme relata o livro O advogado dos escravos, biografia escrita pelo jurista Nelson Câmara, Gama bem que tentou se tornar oficialmente advogado. Pleiteou uma vaga na Faculdade do Largo São Francisco, mas, pela sua condição social e étnica, acabou preterido pela elite cafeeira que dominava a instituição, de acordo com o biógrafo. Resignou-se a frequentar a biblioteca e, assim, aprender sozinho as ciências jurídicas.

No prefácio do livro, o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior define o ex-escravo como “o negro mais importante do século 19“. Ele afirma que suas petições podem ser lidas, hoje, “para auferir ânimo na luta contra todas as injustiças que ainda nos assolam”.

Calcula-se que Gama tenha conseguido alforriar, pela via judicial, centenas de escravos. “Dizem que a quantidade de processos em que ele se envolveu foi enorme. Sob a guarda do arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo, encontram-se menos de 500. Mas isso deve ser analisado com cautela, pois muitos podem ter sido perdidos”, diz o historiador e escritor Paulo Rezzutti, estudioso de personalidades brasileiras do século 19.

“Advogo de graça pela causa dos desgraçados” – Quando se tornou escravo, Luiz Gama foi levado para São Paulo. Na capital paulista, depois de libertado, aprendeu a ler e escrever e passou a atuar junto ao crescente movimento abolicionista. Ele fundou pelo menos dois jornais que circularam na época: primeiro o Diabo Coxo, de 1864, e dois anos mais tarde o Cabrião.

Uma das mais antigas e detalhadas biografias de Gama, O precursor do Abolicionismo no Brasil, foi escrita pelo sociólogo e jornalista Sud Menucci (1892-1948) e publicada em 1938. Segundo a obra, o advogado dos escravos conseguia sucesso em suas empreitadas ao buscar ilegalidades na relação entre o senhor e o escravo que defendia, para assim justificar perante a lei a necessidade da alforria.

Em carta a um amigo, Gama escreveu que promovia “processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas“, auxiliando “licitamente, na medida de meus esforços, a alforria de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores”.

Esse trabalho era sempre feito sem cobrança de honorários. Em entrevista publicada pelo jornal Correio Paulistano em 1869, o abolicionista explicou suas razões. “Eu advogo de graça por dedicação sincera à causa dos desgraçados. Não pretendo lucros. Não temo represálias”, disse.

Seu ganha-pão era o trabalho como jornalista. Além de ter sido um dos fundadores do Diabo Coxo e do Cabrião, trabalhou também nos jornais O IpirangaRadical Paulistano O Polichinelo. Ocupou funções de tipógrafo e de redator.

Também se atreveu a escrever e publicar versos, muitos deles abolicionistas. Usava pseudônimos, como Getúlio, Getulino e Barrabaz.

Figura decisiva para a abolição – Para o jornalista e escritor Tom Farias, especialista no período, Gama conseguiu, com “seu poder de transmitir credibilidade ao movimento”, ser decisivo para a abolição da escravatura no Brasil.

“Sua coragem e determinação fizeram com que as demais pessoas acreditassem que seria possível libertar o Brasil, acabar com o jugo escravista”, aponta ele, que está lançando neste mês o livro José do Patrocínio: A pena da abolição. “Gama deu ao movimento social negro pela liberdade um sentido de que os negros, mesmo escravizados, podiam ser agentes e protagonistas de sua liberdade.”

“Luiz Gama nos deixa um legado ético, que nos permite colocar em confronto certos valores que permeiam o Brasil institucional – a desigualdade, a dependência econômica, o subdesenvolvimento e o racismo“, defende o jurista Almeida. “Porque ele foi um homem que se colocou frontalmente contra a escravidão como instituição, instituição esta que construiu a base política e social do Brasil.”

Para Almeida, Gama é a representação da “luta contra esse pacto”. “Um pacto contra as possibilidades de o Brasil ser um país mais igualitário, mais justo. Este foi um legado ético: de não aceitação, de luta contra todas as formas de obliteração da liberdade”, comenta.

Em 24 de agosto de 1882, aos 52 anos, Luiz Gama morreu em São Paulo, devido a complicações da diabetes. Uma imensa multidão participou do seu cortejo fúnebre.

“Calcula-se que mais de 10% da população de São Paulo”, diz Rezzutti. “Diversos estratos sociais foram honrar sua memória. Membros da alta sociedade paulista e ex-escravizados libertos por ele revezaram-se nas alças do caixão.”

Quase seis anos mais tarde, em 13 de maio de 1888, a princesa regente Isabel (1846-1921) sancionou a Lei Áurea, proibindo o regime de escravidão no Brasil. (Da DW)

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