Convivência tumultuada entre Sérgio Moro e Bolsonaro

Sérgio Moro e Jair Bolsonaro Misto Brasília
Sérgio Moro e Bolsonaro em setembro passado, após o presidente criar atrito com o ministro/Arquivo

Num pronunciamento contundente, o agora ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro deixou o governo de Jair Bolsonaro nesta sexta-feira (24). Moro acusou o presidente de trocar o comando da Polícia Federal (PF) para ter acesso a informações sobre investigações em andamento, o que configuraria uma clara afronta à autonomia do órgão.

“O presidente me disse que queria uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, colher informações. E não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. Imagina se os ex-presidentes Lula ou Dilma ficassem ligando para Curitiba para pedir informações sobre as investigações”, disse Moro. “O presidente me disse que tinha preocupação com inquéritos em curso no STF, e que a troca seria oportuna também por esse motivo. Isso gera uma grande preocupação.”

Para vários analistas, a saída de Moro do governo o credencia a disputar a Presidência da República em 2022, possivelmente contra o próprio Bolsonaro, e deve dar fôlego aos pedidos de impeachment do presidente. Ela é também o ápice de um enfrentamento que, após uma curta lua-de-mel, perdurou durante os 16 meses de governo.

O superministro – Novembro de 2018: Moro convoca a imprensa para anunciar que aceitou assumir no governo Bolsonaro um superministério da Justiça desenhado especialmente para ele. Ao abandonar 22 anos de magistratura, o ex-juiz que ganhou notoriedade com a Lava Jato afirmou que passar para o mundo político seria a chance “de implementar uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado” e consolidar o legado da operação afastando “riscos de retrocessos por um bem maior.”

Foi uma decisão arriscada para Moro e que levantou questionamentos sobre sua conduta à frente da Lava Jato, já que ele foi o responsável direto por tirar da corrida presidencial aquele que provavelmente teria sido o maior adversário de Jair Bolsonaro na disputa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Ao aceitar o cargo, o popular Moro passou a formar um dos três pilares iniciais do governo. Os outros eram os núcleos militar e o econômico, liderado por Paulo Guedes. Todos viriam a perder espaço, seja por inabilidade política, seja pelo comportamento errático e paranoico do presidente e da sua família.

Ao convidar Moro para o seu governo, Bolsonaro disse que o então juiz “teria liberdade total” e “carta branca” para combater a corrupção e o crime organizado.

Briga entre Moro e Bolsonaro interfere no mercado financeiro – #COMPARTILHE o Misto Brasília

Da “carta branca” ao “quem manda sou eu” – Só que 16 meses depois de assumir sua superpasta, Moro não apenas não conseguiu implementar seus projetos ambiciosos como colecionou episódios de desgaste com o presidente, que fez seguidas declarações de desapreço e movimentos contra seu ministro.

Nesta sexta-feira, veio finalmente o desfecho dessa relação tumultuada: Moro deixou o governo falando em “interferência política” de Bolsonaro na sua pasta e na Polícia Federal e acusou o presidente de não cumprir a promessa da carta branca.

Já em fevereiro de 2019, Bolsonaro deixou claro que havia limites na “carta branca” ao ordenar a exoneração de uma conselheira nomeada pelo ex-juiz e considerada “esquerdista” demais pela militância virtual, que responde diretamente aos filhos do presidente.

Nos meses seguintes, Bolsonaro também aproveitou para deixar claro que não estava mais disposto a cumprir compromissos firmados com seu ministro-troféu.

Em maio de 2019, Bolsonaro havia dito que pretendia indicar Moro para uma vaga a ser aberta no Supremo Tribunal Federal, como parte de “um compromisso”. No entanto, em julho voltou atrás e disse que queria alguém “terrivelmente evangélico”, um adjetivo que dificilmente poderia ser aplicado a Moro. Em agosto, disse finalmente que “não existe nenhum compromisso com o Moro”.

No mesmo mês, Moro perdeu seu poder sobre o antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que voltou da sua pasta para o Ministério da Economia em uma jogada do Congresso para aprovar a medida provisória que reduziu o número de ministérios no início do governo. Bolsonaro não se opôs ao movimento dos parlamentares.

Declarações de Moro mostram o lado obscuro de Bolsonaro – #COMPARTILHE

O caso Flávio e as investidas contra a PF – Em agosto, o Coaf ficou ainda mais distante de Moro quando Bolsonaro também determinou a transferência do órgão – hoje chamado Unidade de Inteligência Financeira – do Ministério da Economia para o Banco Central. A medida foi encarada como uma tentativa de dificultar a atuação do órgão, criticado pelo presidente por seu papel na investigação do esquema de “rachadinha” que envolve o senador Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente. Nesse movimento, o então presidente do Coaf, Roberto Leonel, que havia sido indicado por Moro, perdeu o cargo. À época, Bolsonaro justificou a medida afirmando que queria “tirar o Coaf do jogo político”.

O caso mostrou que Bolsonaro estava disposto a antagonizar com seu popular ministro se a questão fosse salvar seu filho e membros do seu círculo envolvidos em suspeitas de corrupção. Agosto marcou para Moro não só a perda definitiva do Coaf, como o início das investidas de Bolsonaro para interferir na atuação da Polícia Federal. Segundo a jornalista Thaís Oyama, autora de um livro sobre o primeiro ano do governo, Bolsonaro já andava irritado com o que considerava uma falta de empenho de Moro em enterrar o caso Flávio. “Ele está no time ou não está”, disse Bolsonaro para assessores, segundo a jornalista.

A amargura do presidente se traduziu em ação contra o ministro quando Bolsonaro soube que Moro havia se encontrado com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, no final de julho. Moro queria que Toffoli revisasse uma decisão que havia determinado a suspensão de todas as investigações envolvendo o Coaf, argumentando que centenas de inquéritos ficariam parados em todo o país. Só que a decisão controversa de Toffoli havia beneficiado diretamente o encrencado Flávio.

De acordo com o livro de Oyama, um Bolsonaro furioso chamou Moro para lhe passar uma reprimenda. “Se o senhor não pode ajudar, por favor, não atrapalhe”, disse o presidente. Ainda em agosto, o presidente passou a tentar nomear um novo superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, o estado onde se concentram as investigações do caso Flávio. O movimento do presidente passava por cima da chefia da corporação subordinada a Moro, algo que nem mesmo presidentes anteriores investigados por corrupção, como Dilma Rousseff e Michel Temer, fizeram.

“Quem manda sou eu. Ou vou ser um presidente banana?”, disse Bolsonaro publicamente na ocasião. Ele também afirmou que, se não pudesse trocar o superintendente do Rio, então iria trocar o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, uma figura próxima de Moro, que atuou com o juiz no Paraná durante alguns dos casos mais ruidosos da Lava Jato, como a prisão de Lula.

No final de agosto, Bolsonaro chegou até a cogitar demitir Moro. Foi demovido pelo ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional. “Se demitir o Moro, seu governo acaba”, disse Heleno, segundo a jornalista Thaís Oyama.

Ao final, ocorreu uma acomodação temporária. O superintendente do Rio foi substituído, mas não pelo nome desejado por Bolsonaro. O presidente ainda fez alguns gestos públicos de aproximação com Moro, como ficar ao lado do ministro no desfile de 7 de setembro.

Mas a rachadura entre Bolsonaro e o núcleo lavajatista permaneceu. No mesmo mês, Bolsonaro impôs um novo procurador-geral sem levar em conta a opinião do ministro. No mesmo mês, Bolsonaro voltou a se irritar com Valeixo ao ser informado que a corporação investigava um de seus amigos, o deputado Hélio Negão. Bolsonaro também nunca deixou de demonstrar desapreço pelas conclusões da PF no caso da facada da campanha de 2018. O presidente regularmente sugere, sem provas, que foi alvo de uma conspiração, mas a PF concluiu que o agressor agiu sozinho.

Em dezembro, Bolsonaro voltou a enfraquecer Moro ao sancionar uma versão desidratada do pacote anticrime do ministro sem vetar a figura do “juiz de garantias”, incluída no texto pelo Congresso. Moro pediu repetidas vezes que o presidente vetasse o item.

Em janeiro, Bolsonaro voltou à carga contra Moro ao afirmar que estava considerando desmembrar a área de Segurança Pública da pasta de Moro, mas poucos dias depois recuou.

O conflito decisivo – Ao longo de março e o início de abril, Bolsonaro se voltou contra outra figura do governo que, tal como Moro, passara a desfrutar de altos níveis de aprovação junto à opinião pública. Na ocasião, o presidente afirmou que demitiria subordinados que estavam “se achando” e tinham “virado estrelas”.

À frente dos esforços para combater à pandemia de covid-19, o então titular da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, foi fritado publicamente pelo presidente até ser finalmente demitido em 16 de abril. Inicialmente, Bolsonaro postergou a decisão por pressão do núcleo militar e pelo temor de uma eventual repercussão desastrosa. Mas Mandetta, após seguidos episódios de sabotagem por parte de Bolsonaro, acabou sendo forçado a deixar o cargo.

A repercussão, no entanto, não se revelou decisivamente negativa para Bolsonaro. Por essa lógica, também seria possível sobreviver às ofensivas contra outras figuras populares, como Moro.

O movimento ocorreu menos de uma semana depois da saída de Mandetta. O alvo inicial, mais uma vez, foi a Polícia Federal. Desde o início do ano, Valeixo, desgastado, passou a afirmar a interlocutores que pretendia deixar o cargo, mas foi demovido por Moro. Nesta semana, Bolsonaro tomou a iniciativa e demitiu o diretor-geral.

Para nomear um substituto, Bolsonaro tem ouvido sugestões de seus filhos, que querem o diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, no cargo. O núcleo político do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que se aproximou do presidente recentemente, tenta emplacar o secretário de Segurança Anderson Torres.

A saída de Valeixo foi oficializada no Diário Oficial nesta sexta-feira, apontando falsamente que a exoneração foi feita “a pedido” de Valeixo. No dia anterior, Moro já havia avisado que não aceitaria a interferência, e que entregaria o seu próprio cargo se Bolsonaro confirmasse a demissão.

E assim ocorreu. Nesta tarde, o ex-juiz que emprestou a popularidade da Lava Jato para um presidente que nunca escondeu sua disposição de interferir politicamente para beneficiar sua família e seu círculo encerrou seus breves 16 meses no governo. “Eu respeito a lei, a impessoalidade no trato das coisas do governo”, resumiu. (Da DW)

Informativo Misto Brasil

Inscreva-se para receber conteúdo exclusivo gratuito no seu e-mail, todas as semanas

Assuntos Relacionados


Informativo Misto Brasil

Inscreva-se para receber conteúdo exclusivo gratuito no seu e-mail, todas as semanas