Quando um grupo de investigadores italianos publicou em abril um artigo em que mostrava que os doentes mais graves de Covid-19 tinham níveis de vitamina D quase inexistentes e propunham que ela lhes fosse administrada como parte do tratamento no hospital, a professora e investigadora Conceição Calhau, da Nova Medical School da Universidade Nova de Lisboa, e do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (Centesis), não ficou surpreendida. Bem ao contrário.
Aqueles dados vinham ao encontro do que já se sabe sobre o papel fundamental da vitamina D para o funcionamento do sistema imunitário, e em particular na proteção contra as infeções respiratórias.
Ao seu olhar de bioquímica e especialista em nutrição, a relação estreita entre a gravidade das infeções pelo novo coronavírus e os níveis deficitários daquela vitamina relatada pelos cientistas italianos era óbvia. E acabou por se tornar o ponto de partida para uma série de perguntas novas.
Poderia, por exemplo, a dimensão excecional da epidemia em Itália, para além de outros fatores eventualmente em jogo, estar relacionada com níveis mais baixos de vitamina D na população italiana? E como verificar se esta eventual vulnerabilidade metabólica pode ser decisiva para a gravidade da infeção pelo Sars-cov-2 nos diferentes doentes?
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Indo ao coração do problema, e tendo em conta o muito que ainda se desconhece sobre este coronavírus e a infeção que provoca, qual poderá ser, afinal, o papel das vulnerabilidades metabólicas relacionadas com a vitamina D na gravidade da infeção pelo Sars-cov-2?
Com todas estas perguntas em mente, a professora e investigadora da Nova Medical School decidiu mergulhar no assunto.
O seu objetivo é perceber, a partir de doentes de Covid-19 em Portugal, qual é exatamente o contributo da deficiência em vitamina D na gravidade da infeção pelo Sars-cov-2, verificar se existe nos doentes uma base genética que determine uma produção menos eficiente daquela vitamina e, a confirmarem-se essas hipóteses, produzir recomendações para uma eventual suplementação vitamínica dirigida aos grupos de risco para a Covid-19.
Os dados sobre a vitamina D dos doentes já começaram a ser recolhidos, mas a equipe ainda está à procura de financiamento para o projeto.
Esta não é, no entanto, a única investigação através da qual Conceição Calhau e a sua equipe pretendem relacionar as questões metabólicas com a Covid-19 e os seus diferentes graus de severidade.
Num segundo estudo, que também já esta ocorrendo, o objetivo é avaliar a relação entre o microbiota dos doentes de covid-19 em Portugal e a gravidade da infeção – o microbiota é conjunto de microrganismos que vive no intestino humano, e que é constituído por milhões de bactérias que são vitais para o seu funcionamento equilibrado.
Coincidência, ou algo mais? – Tal como acontece em relação a quase tudo no organismo humano, também a produção de vitamina D se torna menos eficiente à medida que a idade avança. E, como se não bastasse, uma grande parte das pessoas mais velhas, pelas suas condições de saúde, toma regularmente medicamentos que muitas vezes interferem com a capacidade de síntese daquela vitamina. Por isso, estas pessoas têm muitas vezes níveis deficitários desta vitamina. E o mesmo acontece com quem sofre de alguns problemas crónicos de saúde, como acontece com a obesidade ou a diabetes.
O que é isto tem a ver com a covid-19? Não se sabe ainda ao certo. Mas pode ter – e muito. E é exatamente isso que a equipe de Conceição Calhau quer tirar a limpo.
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“Hoje sabe-se que a vitamina D é muito importante para os vários sistemas do organismo, porque tem efeitos anti-inflamatórios, antioxidantes e antimicrobianos, e sobretudo temos evidências científicas de que ela tem um efeito protetor no caso das infeções respiratórias causadas por vírus”, conta a investigadora.
Passados cinco meses sobre o início da pandemia, que surgiu na China no final do ano passado e rapidamente alastrou ao resto do mundo, infectando milhões de pessoas e matando muitos milhares, confirma-se que os principais grupos de risco são, justamente, as pessoas mais velhas e as que sofrem de doenças crónicas, como a diabetes, a hipertensão, ou a obesidade. Será apenas coincidência?
Conceição Calhau espera ter uma resposta dentro de três meses. Nessa altura já terá os dados preliminares do projeto de investigação que está a desenvolver em colaboração com os médicos Fausto Pinto, do Hospital de Santa Maria e diretor da Faculdade Medicina da Universidade de Lisboa, e Tiago Guimarães, do Hospital de São João e da Faculdade de Medicina do Porto, e da investigadora em bioinformática Ana Teresa Freitas, professora do Instituto Superior Técnico, fundadora e atual CEO da startup tecnológica HeartGenetics.
A equipe vai avaliar amostras de pelo menos 60 doentes dos Hospitais de Santa Maria, em Lisboa, e de São João, no Porto – mas no final deverão ser muitos mais porque há parceiros de Itália, Espanha e Brasil que também pretendem participar no estudo.
O objetivo é então relacionar os níveis de vitamina D observados nos doentes com os graus de severidade da covid-19.
“Vamos incluir doentes ligeiros, moderados e graves e avaliar a sua história clínica e os respetivos níveis de vitamina D, para perceber se existe uma relação”, adianta a professora e investigadora da Nova Medical School.
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Outra vertente importante será a avaliação dos perfis genéticos dos doentes em relação à produção de vitamina D, que não é igual para todas as populações.
Duas variantes para um gene – A maior parte (cerca de 80%) da vitamina D é produzida através da pele, a partir da exposição à luz solar. Os 20% restantes vamos buscá-los à alimentação, ou a suplementos, como o peixe e a carne, e óleo de fígado de bacalhau. Mas os seres humanos não produzem todos as mesmas quantidades de vitamina D: há grupos populacionais cujo organismo é menos eficiente a fazê-lo, e isso está inscrito no seu ADN.
“É um produto da evolução humana ao longo de milhares de anos”, explica a investigadora Ana Teresa Freitas, que fará a análise do perfil genético dos doentes para esta característica.
A base genética do metabolismo da vitamina D é hoje bem conhecida. Um gene, o DHCR7, é o responsável pela produção da vitamina D a partir da exposição solar e depois há outros seis que regulam o seu metabolismo no organismo.
Mas, no decurso da evolução humana, estes genes ganharam variantes, e o DHCR7 é um caso exemplar.
“O gene sofreu alterações para uma adaptação ao ambiente, consoante a disponibilidade da luz solar”, explica Ana Teresa Freitas.
“Nos povos de regiões muito luminosas, mudou para se tornar menos eficiente, de forma a diminuir a produção de vitamina D face à grande disponibilidade de luz. Ao contrário, nas populações das geografias com menos luz, alterou-se para se tornar mais eficaz”.
Os estudos de genética das populações mostram essa distribuição da variabilidade do DHCR7. Cerca de 80% da população africana tem a variante menos eficiente do gene, enquanto a sua prevalência nas populações do norte da Europa é de apenas 5%. Já em países como a Finlândia, a Noruega ou a Suécia, cerca de 95% da população tem justamente a variante mais produtiva.
“Apesar disso, países como a Finlândia optaram por fazer a suplementação das suas populações para a vitamina D, sobretudo porque nas últimas décadas a vida se tornou mais sedentária e as pessoas já não passam tanto tempo ao ar livre”, diz Ana Teresa Freitas.
Para as populações do sul da Europa, os dados mostram uma maior variabilidade para este gene, com uma presença significativa da variante menos eficiente em países como a Itália ou a Espanha.
Por outro lado, avaliações recentes tornaram evidente que nestes países, incluindo em Portugal, existem largas faixas da população que são deficitárias em relação a esta vitamina.
Algo que dá que pensar no contexto da presente pandemia. “Queremos por isso avaliar esta questão para os doentes portugueses”, sublinham as duas investigadoras. Pistas não faltam, e uma mais curiosas está, aliás, na base de dados da HeartGenetics, como conta Ana Teresa Freitas. (Do DN, de Portugal)