Com um cenário político turbulento como pano de fundo, um presidente em constante conflito com outros poderes e incertezas sobre a chegada de uma vacina para a Covid-19, os brasileiros chegam ao fim de 2020 sem saber se o pior da pandemia – e da crise econômica associada à ela – já passou no país, cada vez mais isolado internacionalmente.
“O ano de 2020 é surpreendente”, avalia o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social. “O mercado de trabalho foi para o inferno, mas olhando para a renda de todas as fontes, a gente foi para o céu.”
Entre os países emergentes, nenhum gastou tanto com auxílios como o Brasil, lembra Neri. E com esse auxílio emergencial, que chegou a 67 milhões de brasileiros, um terço da população, “a taxa de pobreza foi para o menor nível da historia documentada, depois de todos os índices terem piorado muito entre 2014 e 2019, os anos de grande recessão dos pobres.”
“Com isso, 15 milhões de pessoas saíram da pobreza, comparado com 2019. A pirâmide de distribuição de renda nunca foi tão boa quanto em setembro de 2020”, afirma.
O governo, que se diz seguidor da Universidade de Chicago, foi mais para Cambridge e John Maynard Keynes, com sua política anticíclica. Só que o auxílio caiu pela metade, a partir de setembro, e com isso a pobreza aumentou 17% em um único mês. “Uma parte das pessoas que tinham saído da pobreza já voltaram”, comenta o especialista.
Agora, frente à segunda onda da pandemia, os caixas do governo já estão vazios, deixando a situação fiscal do Brasil deteriorada, com uma dívida bruta de mais de 90%. E ainda não há nada anunciado para substituir o auxílio emergencial, que se encerra em dezembro.
“O Brasil de 2021 agora é uma verdadeira era das incertezas máximas”, diz Neri. E o resumo de 2020? “Olhamos para 2020 como uma espécie de um realismo fantástico sul-americano, uma situação muito ruim no mercado de trabalho que deve ditar o que acontece em 2021.”
A natureza do governo Bolsonaro – “O Brasil está longe do fundo do poço”, avalia o cientista político Marco Aurélio Nogueira. Para ele, o cenário político turbulento deve contribuir para a continuação da crise. “As guerras contra o Congresso e a Suprema Corte prosseguirão. Porque compõem um programa de trabalho do presidente, assim como os ataques à imprensa. Essa é a natureza do governo e da persona do presidente.”
Quanto mais as eleições de 2022 se aproximam, mais radical o presidente tende a ficar, acredita Nogueira. Para ele, o caso da vacina contra o coronavírus é emblemático. “Ele fala em união num dia, e grita contra a vacina no outro.” Com isso, ele tenta dar sustento aos dois grupos que são importantes para seu plano de reeleição: a grande massa do povo, e os setores radicalizados do bolsonarismo.
E ainda haverá uma disputa dura sobre as duas presidências do Congresso, principalmente pela da Câmara, que definirá se o governo terá uma vida dura, se perder esta eleição, ou uma vida um pouco mais tranquila, caso consigo emplacar o próprio candidato.
Mas, mesmo assim, as tarefas para 2021 serão difíceis. “É um governo muito ruim, sem qualidade, sem capacidade de articulação, sem generosidade para com a sociedade”, diz Nogueira. Isso, segundo ele, afeta todos os ministérios, mas, principalmente, os ministérios de Saúde e Educação e a área da cultura.
“Mas o desgoverno também é muito prejudicial para o Meio Ambiente e para o relacionamento externo do Brasil. Não por acaso, são dois dos ministérios mais frágeis e mais carregados de problemas, mais criadores de atritos do governo Bolsonaro”, comenta.
Lembrando que, em 2021, Bolsonaro não terá mais Donald Trump como aliado ideológico na Casa Branca. Joe Biden, por sua vez, deve se juntar aos europeus para pressionar o Brasil a investir na preservação ambiental. O novo presidente estadunidense já deixou claro que até pode pensar em sanções contra quem não protege o meio ambiente.
O resumo que Nogueira faz de 2020 é duro: “O governo deixou de lado o governar, não governou e tentou compensar essa falta de governança com uma exacerbação do discurso ideológico. Não poderia dar certo isso, sobretudo num país com tantos problemas como o Brasil”.
A dúvida da vacina – Para um ano de 2021 melhor que 2020, muito depende do sucesso da vacina no Brasil. Num ritmo de 600 mortes por dia, o Brasil se aproxima, atualmente, de 200 mil óbitos por covid-19. Mas até nesta área de vacinas, o Brasil está atrás.
“O Brasil tinha tudo para ser, provavelmente, o primeiro país da América Latina a vacinar sua população inteira, pois tem um dos melhores programas de imunização do mundo, e nós sabemos fazer vacina e sabemos fazer campanha de vacinação“, diz a microbiologista Natália Pasternak Taschner, da USP. “A grande surpresa foi ver que o atual governo realmente conseguiu atrapalhar até o que a gente tinha de melhor, por falta de planejamento, por falta de gestão e por interesse político.”
Assim, o Brasil começa 2021, segundo Pasternak, com uma superestrutura para a vacinação, mas sem vacina. “Não foram feitos acordos internacionais em números suficientes para garantir o número de doses necessárias para vacinar uma população tão grande como a nossa”, diz.
Neste momento, o governo brasileiro só fechou um contrato, com o laboratório AstraZeneca, cuja vacina vai atrasar. E o governo paulista tem um contrato com a chinesa Sinuvac, cuja vacina Coronavac ainda está cercada de dúvidas frente à sua eficácia. E que sofreu ataques fortes pelo governo de Jair Bolsonaro por ser a ‘vacina chinesa”.
“Provavelmente não vamos conseguir vacinas toda a população em 2021”, avalia Pasternak. Mas ela espera que, pelo menos, será possível vacinar uma parte tão grande que “vamos poder retomar um pouco da nossa vida normal, da nossa economia, da nossa sociedade”.
Podia ter sido melhor. “Não houve vontade política, e não houve – até este momento – uma conscientização da gravidade da situação. Nem pelo governo federal e nem por grande parte da população, como estamos vendo agora com as festas de final do ano”, afirma. “As pessoas ainda não entenderam que elas tem um papel para cumprir na prevenção da doença. O comportamento delas pode definir como será o nosso ano de 2021.”
Para o economista Neri, o Brasil ainda não chegou no fundo do poço “Talvez a gente estivesse com a cara surpreendentemente para fora do poço. Só que a gente vai voltar para o poço. Podemos até chegar a um lugar mais baixo no fundo do poço do que a gente estava antes da crise”, diz. Mas o economista não é só pessimista. “Às vezes, o Brasil, quando está na beira do abismo, começa a fazer coisas para não cair”. (Da DW)