Moïse chegou com os irmãos para fugir dos conflitos que transformam crianças em soldados
Texto de João Pedro Soares
O último domingo (30) deveria ter sido um dia de celebração para Hervé Kalemat. O congolês de 31 anos, que vive no Rio de Janeiro, organizou uma festa de aniversário para sua única filha. Ao escolher a data do evento, ele não poderia imaginar que precisaria se ausentar para acompanhar o enterro de um conterrâneo.
Trata-se de Moïse Kabagambe, de 24 anos – para os amigos, apenas “soldat“. Embora remeta ao passado de guerra no Congo, o apelido foi conquistado pela capacidade de superar as dificuldades da vida. Moïse foi espancado até a morte em um quiosque na orla da Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, no dia 24 de janeiro.
“Até agora não consigo acreditar que perdemos um dos nossos de maneira brutal, cruel, desumana“, afirma. “Quando vi o vídeo do que aconteceu, fiquei 20 minutos paralisado. Como o ser humano pode chegar a esse ponto? Falei para a minha esposa: vamos nos preparar para sair daqui”, conta Hervé.
O desejo de levar a família para outro país já existia, devido à situação econômica do Brasil e à insegurança vivida no Rio. Agora, passou a ser uma urgência.
“Sei que isso pode acontecer em qualquer lugar do mundo. Quando é mais longe, você já sente a dor. Mas próximo assim… Imagina se fosse eu lá? Como ficaria minha filha?”, diz.
Caminhos cruzados
Hervé e Moïse chegaram ao Brasil no mesmo ano, em 2011. Embora ambos viessem da República Democrática do Congo (RDC), traziam histórias distintas na bagagem. Moïse, com 14 anos à época, chegou com os irmãos para fugir dos conflitos que transformam crianças em soldados.
Hervé, por sua vez, pôde crescer em um contexto mais pacífico por ter sido criado na zona urbana de Kinshasa, capital da RDC. No Brasil, estava focado em concretizar o sonho da mãe, que ficou viúva meses após o seu nascimento e, como professora, educou cinco filhos por conta própria.
“Ela economizava o dinheiro da passagem porque era muito difícil manter cinco filhos estudando no Congo, onde você paga caro para isso. Na minha formatura, eu só pensava na minha mãe e em toda a luta que enfrentou para eu chegar ali. Infelizmente, ela não pôde vir porque a passagem é muito cara”, lamenta.
Todos os irmãos fizeram faculdade, e hoje estão no Congo e na França. Hervé, o caçula, cursou Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, tendo concluído a graduação em 2019. O ingresso se deu pelo Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G), iniciativa que oferece oportunidades no ensino superior a jovens de países em desenvolvimento parceiros do Brasil. (Texto publicado na DW)