De Figueiredo ao Fascismo

Bolsonaro no Planalto
Bolsonaro contribuiu na desinformação em meio a pandemia que já matou milhares de brasileiros/Arquivo
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Itamar cumpriu à perfeição a tarefa, mas juntamos o capitão do mato com o capitalismo de barbárie

Texto de Vinício Carrilho Martinez e André César

João Figueiredo, o último general da Era Golpe de 1964, celebrizou-se por preferir o cheiro dos cavalos ao convívio com o povo brasileiro. Mais do que animador de um festim de ironias, essa fala de Figueiredo revela – como poucas, na história desse país – qual é o apreço das elites, do tal sistema, do establishment, acerca do povo, da classe trabalhadora, da cultura nacional e de nossa diversidade étnica. Não será difícil recordar como os movimentos sociais, populares, as populações indígenas, os trabalhadores acantonados em periferias e palafitas, foram tratados ao longo de nossa história política.

Porém, os civis e militares do pós-64 elevaram a seletividade do Estado Penal, do Estado Policial e do Estado Militar a outros patamares. E com Figueiredo, anunciando-se em “transição lenta, gradual e segura” a um governo efetivamente civil (Tancredo Neves), o povo seria
apresentado ao cheiro dos cavalos.



A rigor, Figueiredo representa a síntese do regime militar. Truculento, averso ao diálogo e, repetindo, elitista. Ao fim e ao cabo, o final melancólico de sua gestão – inclusive sem a passagem de faixa presidencial – representou uma troca de guarda nas elites. Do militar para o civil, sem grandes mudanças no jogo.

Tancredo Neves, eleito em Colégio Eleitoral – derrotando Paulo Maluf – não assumiria o comando da transição. Aí a conhecida Nova República cairia no colo de José Sarney (1985) – um imortal da ABL que também não conheceu o povo: herdeiro de farto coronelismo, não ficou feliz, diga-se de passagem, com a Assembleia Nacional Constituinte liderada e tocada por Ulysses Guimarães. Além da produção de uma nova Constituição, acordada entre várias cores políticas, mas definitiva naquela época sob a definição do Processo Civilizatório e do Estado Democrático de Direito, o desastre
econômico não foi retido por Sarney e muito menos pelo efêmero e barulhento exército popular de “fiscais do Sarney”.



José Sarney, com seus planos heterodoxos – Cruzado, Verão, Bresser – foi do céu ao Planalto infernal em cinco longos anos: seus últimos meses no Planalto foram mais do que melancólicos, trágicos, com inflação mensal rondando os 80%. Saiu pela porta dos fundos, dando sentido à frase “é a economia, estúpido” (mas não só).

José Sarney
Sarney foi do céu ao Planalto infernal em cinco longos anos/Arquivo/Divulgação

Itamar Franco – vice de Fernando Collor – assumiu a batata quente da hiperinflação e do impeachment. A tarefa não era simples – aliás, nunca foi em nossa história política. Seu ministro da Economia (Fernando Henrique Cardoso), lograria os entulhos sistêmicos da economia em pandarecos com o Plano Real – após muitos Planos Cruzados que não se cruzavam com o interesse popular e nem com qualquer projeto de industrialização, geração de emprego e de renda. Veríamos uma resposta melhor, nessa quadra, em 2008, enfrentando a grave crise cíclica do capital – a partir do incentivo ao consumo da “linha branca” (Lula 2).

Itamar, diga-se, cumpriu à perfeição a tarefa que lhe foi determinada. Cercado de economistas, ele abriu espaço para a tecnocracia. Abriu espaço, é fato, para o projeto tucano de poder, com o suporte de setores da elite mais conservadora (PFL e PMDB, em especial).

Se FHC obteve êxito no controle inflacionário, isso é fato, esse feito não o inocenta da forte crítica necessária, obrigatória, quanto à condução do restante da economia nacional e na tratativa da institucionalidade do poder. Sem adentrar no palco da corrupção política – não provada, como ocorreu na absolvição do próprio Collor –, FHC desidratou o Estado Social, aplicou-se sobejamente às privatizações, bem como combateu e
“desarmou” o controle institucional sobre o Poder Político: animou-se, projetou e acatou a emenda da reeleição. A Lei de Responsabilidade Fiscal seria elogiável, se não reduzisse a capacidade estatal de combater a fome e a miséria.

Interessante notar aqui que, hoje, as duas grandes construções legais da era FHC, a emenda da reeleição e a Lei de Responsabilidade Fiscal, necessitam de urgente revisão. A reeleição, gestada em um processo eivado de suspeições, demonstra grande fragilidade quando se avalia um governo e um “projeto” como o atual. Já a responsabilidade fiscal, em tempos pandêmicos e de guerra, com a fome e a miséria assolando, poderia ser menos rigorosa. Debates necessários.



Lula da Silva perdeu para Collor e para FHC, mas viria a ser o primeiro operário-presidente do Brasil (2002) e, assim, reacenderia velhos e novos sonhos do povo, da classe trabalhadora, dos jovens e das mulheres. A ampliação das universidades públicas (REUNI) e o financiamento sustentável de estudantes pobres (FIES), os vários projetos sociais e populares foram marcantes, decisivos para que o país não estivesse em piores condições, hoje, em 2022. Porém, o governo estilo social-democracia também não cansou de acordar as decisões e empenhos políticos e financeiros com o Agronegócio, por exemplo.

A crise do mensalão deixou claras as limitações (e o desgaste) do presidencialismo de coalizão. Com um Parlamento absolutamente fragmentado e enfrentando desconfiança de parte das elites, o jogo político saiu dos trilhos. Um preço elevado, que cobra a fatura até hoje.

Dilma Rousseff, primeira mulher a se eleger no comando do imenso Poder Executivo brasileiro (“superpresidencialismo”), não suportou as investidas políticas que mais necessitariam de necrópsia: Eduardo Cunha, seu algoz na Câmara dos Deputados, não liberou o processo de impeachment (Golpe de Estado) movido por alguma irrefreável crise de ego ferido. Cunha representou, naquela fase, o que havia de pior na sociedade e na política institucional.

Sem materialidade (e, portanto, sem autoria), não haveria como se sustentar – juridicamente, eticamente – o processo de impedimento, em 2016. Como processo jurídico-político (diferenciado dos demais processos judiciais), o impeachment se revelou golpe assim que foi instalado. Se não havia suporte legal – inclusive com absolvição do TCU (Tribunal de Contas da União) – não tinha como seguir em frente, na seara política; ou seja, o impeachment de Dilma Rousseff (golpe) sempre foi político, sem sustentação jurídica em “pedaladas fiscais” (que não são default) e muito
menos nos tais “decretos de contingenciamento”.

O Golpe de 2016 foi apenas e tão somente um golpe político – recoberto pelo ódio à presidenta que fora guerrilheira, pelo fato de ser mulher e preferir o cheiro do povo a qualquer cavalo. Ou seja, um mix de misoginia, racismo, ódio às minorias – preconceitos de toda ordem, enfim. O Brasil deu largos passos para trás. O Golpe de Estado de 2016 ainda é um problema, pois gerou o (re)surgimento do Fascismo pós-moderno (Temer) e o recrudescimento do Fascismo medievalesco atual (2019-2022). Os maiores erros e pesadelos de Dilma foram na economia desabastecida, especialmente, diante do imparável processo de desindustrialização nacional.



O Golpe de 2016 também ficou conhecido por ter instituído o Estado de Exceção acima, fora e contra os Preceitos Constitucionais de 1988 – que chamamos de Ditadura Inconstitucional. Temer, o vice que comungou nos escaninhos do poder, mas que recusa a autoria do Golpe, conheceu os fantasmas do Palácio do Planalto – acabou mudando-se para o Jaburu – e assim fechou o ciclo do pior Poder Político que conhecíamos (até 2019).
Temer, que se apresentou ao país como “constitucionalista”, tratou de reescrever a Constituição Federal de 1988, o quanto pode. Tanto se sensibilizou com os destinos da Nação que, já em 2016, decretou solenemente o banimento criminológico das reconhecidas (por ele) pedaladas fiscais.

A conspiração no golpe, por sua vez, não lhe foi condecorada como medalhista do ano. Os esforços de Temer, individualmente, nada teriam de efeito real não fossem os socorros emanados dos demais poderes. Não se ouviu ou leu um pio no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da absurda
inconstitucionalidade do Golpe de 2016, bem como o Legislativo – salvo uma parcela da esquerda – adentrou feliz no canto da sereia.

Ex-presidente Dilma Rousseff
Dilma foi a primeira mulher eleita na História do Brasil/Arquivo/Divulgação



Com Michel Temer viemos a conhecer o que se pode chamar em Ciência Política de Cesarismo de Estado: um César tripartite, com as três cabeças da Medusa malévola. O aparelhamento fascista do Estado teve início, precisamente, no governo Temer – a começar pelo uso excludente da Polícia Federal na repressão política nos Campus das Universidades Federais, já em 2018.

Por sua vez, a chegada ao poder do bolsonarismo (lumpemproletariado), em 2019, fortificou em primeiro lugar o desmantelamento das redes de proteção da cidadania: mais de 40 Comitês, Assessorias, Comissões foram desarticuladas pelo Fascismo que se recrudescia desde ali: o país viria a conhecer de perto, tragicamente, brutalmente, as piores políticas necrofascistas (MARTINEZ, 2022). Juntamos, desde 2016, mas com sobras na pandemia de 2020, os piores ácidos corrosivos e desumanizadores; juntamos o capitão do mato com o capitalismo de barbárie: Fauno e Fausto.

Além das saudações nazistas recorrentes, as declarações e ações do poder “ex parte principis” traria angústia a qualquer príncipe caudilhesco: o Kaiserpresidente esticaria tanto a corda da conhecida “dominação racional-legal”, atearia tanto fogo à CF88 e à civilização nacional – sempre combalida – que chegou ao ponto de “usar o direito de liberdade para pregar golpes à democracia”. Além dos crimes hediondos já em julgamento
perante o Tribunal do Povo (ONU), definidos como inafiançáveis e imprescritíveis na Carta Política de 1988, os caminhos parecem abertos para outros procedimentos junto ao Tribunal Penal Internacional.

A barbárie entre nós é o horror, o horror, avalizado pelo Centrão. 2022, ano eleitoral em que se poderá defenestrar o Fascismo (eleito e empossado em 2018-2019), poderá não acabar. Os gritos pela condução de outra Diretas-Já encontram uma parede de sequelas ainda não conhecidas apropriadamente, pois, os ouvidos do povo (eleitor) ainda têm muita cera da malévola sereia metamorfoseada em Pandora e em seus séquitos de Anjos da Morte. O futuro é incerto e nebuloso.

Referência
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Necrofascismo: Fascismo Nacional, necropolítica,
licantropia política, genocídio político. Curitiba: Brazil Publishing, 2022.

(Vinício Carrilho Martinez é cientista social e André Pereira César é cientista político e articulista do Misto Brasília)



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