Texto de João Almeida Moreira
Chamada de “Bolsonaro de saias”, a deputada Joice Hasselmann (SP), mulher mais votada nacionalmente nas últimas eleições gerais, agora só continua fiel às saias.
Na esteira da guerra fratricida dentro do PSL, entre Jair Bolsonaro, presidente da República do Brasil, e Luciano Bivar, presidente do partido dele, a parlamentar ficou do lado do segundo. Imediatamente destituída pelo chefe de estado pela suja tomada de posição, trocou farpas com ele e com dois dos seus filhos e agora ameaça contar os podres da campanha de 2018, o que, no limite, pode até resultar em impeachment.
Ela, assim como o Major Olímpio (SP) e o Delegado Waldir (GO), parlamentares considerados mais bolsonaristas do que Bolsonaro, estão agora de costas voltadas para o Palácio do Planalto. É o chamado “Efeito Frota”, em alusão ao ex-ator que se tornou dissidente ainda em agosto.
O afastamento de Joice, uma das mais bem-sucedidas youtubers do comentário político pop do país e conhecida repórter da revista Veja, ter sido acusada de dezenas de plágios de concorrentes e até de colegas de redação, teve como cenário a crise no PSL, deflagrada pelo presidente da República num comentário ofensivo para o presidente do partido – “esse cara ‘tá queimado“, disse – dirigido a um apoiante à saída do palácio do Alvorada, a sua residência oficial.
Ofendido, Luciano Bivar contra-atacou, dizendo que Bolsonaro já estava “esquecido” no PSL, gerando uma guerra entre as duas fações: os que tomaram as dores da família presidencial, impulsionadora do sucesso do pequeno partido nas últimas eleições, e os que tomaram as dores da cúpula partidária, que cedeu a sua sigla para que o antigo capitão do exército pudesse concorrer.
O campo de batalha foi a eleição para líder parlamentar do partido, no qual a primeira ala avançou com uma lista encabeçada por Eduardo Bolsonaro para tentar destituir o Delegado Waldir, líder até então. Joice não aderiu e acabou destituída por Bolsonaro das suas funções em defesa do governo na Câmara dos Deputados.
A sua ira foi também despertada por um comentário de Filipe Martins, assessor especial de Bolsonaro para a área das relações internacionais, que pontuou nas redes sociais que Eduardo era o homem certo para liderar o grupo parlamentar. “Ei, macho, macho man!”, respondeu Joice. “Respeito os ‘viados’ assumidos. Os que são corajosos. Os que se escondem no conservadorismo, fazem pinta de machões escondidos em suas pseudo canetas e ficam mandando indiretas como se fossem ‘machos’ não merecem o meu respeito. Frouxo é frouxo, não importa o posto que tenha”.
Em auxílio de Martins, um protegido de Bolsonaro e do guru político de ambos Olavo de Carvalho, surgiu Douglas Garcia, deputado estadual pelo PSL: “Agora o Congresso tem uma parlamentar que se preocupa com a saída do armário alheia. Basicamente ela disse que só os ‘viados’ assumidos podem ser machos, os discretos não. Vejam só: mais de um milhão de votos para ser fiscal da vida íntima dos outros”.
A resposta de Hasselmann foi imediata: “Sentiu o baque, mona?”. “Mona”, como “viado”, são termos pejorativos para gays.
Garcia ficara célebre por ter dito em plenário que retiraria “no tapa” um transexual que quisesse usar a casa de banho feminina onde estivessem a sua mãe ou irmã, em resposta a uma intervenção da parlamentar transexual pelo PSOL Erica Malunguinho. Dada a natureza do ataque, amigos gays do deputado ameaçaram-no de revelar a sua homossexualidade, caso ele não o fizesse por si mesmo. Ele assumiu-a, horas depois, em plenário.
Mais tarde, Hasselmann manteria uma conversa surreal com Carlos Bolsonaro, filho do presidente, por meio de emojis no Twitter: ele publicou emojis de uma porca (a alcunha de Joice é Peppa Pig, pela sua suposta semelhança com a personagem infantil) e de uma cobra; ela respondeu com emojis de viados e de ratos.
E na sequência, a deputada, que de tão bolsonarista até benzeu o seu gabinete na Câmara ao saber que um dia o espaço fora ocupado pelo então deputado Lula da Silva, atacou o próprio presidente – “a inteligência emocional dele é de menos 20” – e a ação do executivo que ele lidera – “já estava farta de discursar em plenário a consertar as trapalhadas desse governo”.
Mais: deixou uma ameaça – “eu sei o que vocês fizeram no verão passado” – a propósito de suposto uso de uma estrutura de robôs usada para eleger a família Bolsonaro. “Quem aguenta um ataque coordenado por 20 perfis de Instagram e 1500 páginas de Facebook atacando todo o dia, com memes sendo preparados, com todos os grupos de Whatsapp, ataca aqui, ataca ali?”, disse em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na última segunda-feira.
O PT, partido de Fernando Haddad, candidato derrotado por Bolsonaro, por sempre defender o uso irregular de robôs na campanha, já pediu que Hasselmann explique o que sabe do verão passado em Comissão Parlamentar de Inquérito.
Tales Faria, colunista do portal UOL, sublinha que, no limite, a deputada pode levar com essas acusações ao impeachment do presidente, comparando a situação de Collor de Mello, em 1989, em circunstâncias similares.
Além de Hasselmann, causa estranheza o rompimento entre a família Bolsonaro e o Delegado Waldir, líder parlamentar notado por estar constantemente a imitar disparos com uma arma na Câmara dos Deputados, a imagem de marca da candidatura presidencial, e de entrar em plenário de pistola à cintura.
Ao ouvir um áudio do presidente a lançar a lista para derrubar do cargo e colocar Eduardo no seu posto, foi ele próprio gravado a chamar Bolsonaro de “vagabundo“. “Eu sou o cara mais fiel a esse vagabundo, cara. Eu votei nessa porra, eu andei ao sol em 246 cidades, gritando o nome desse vagabundo”. Noutra ocasião, chamou Bolsonaro de “marionete’ nas mãos dos filhos.
Outra das faces mais visíveis do bolsonarismo, o senador Major Olímpio, também ficou do lado oposto da barricada: “Se um cone disputar a liderança parlamentar com o Eduardo o cone ganha”.
Olímpio votara no Senado a favor da ida à câmara alta do Congresso de Filipe Martins, o tal assessor protegido de Bolsonaro, para se explicar naquela Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga propagação de fake news em campanha.
Eduardo respondeu ameaçando revelar um telhado de vidro de Major Olímpio num caso, conhecido como Itaipugate, em referência a um negócio mal explicado relativo à fábrica elétrica de Itaipu.
A Carlos Bolsonaro, o senador disse “achar que é um príncipe”, ao que o segundo filho do presidente ripostou chamando-lhe de “bobo da corte”.
Pelo seu mediatismo, Joice Hasselmann, Delegado Waldir e Major Olímpio são os “bolsonaristas em rota de colisão com o bolsonarismo” mais falados – mas não passam da ponta de um icebergue de um partido dividido ao meio no Congresso. E não passam também de último capítulo do que se convencionou chamar de “Efeito Frota“, em alusão a Alexandre Frota, um outrora fanático apoiante de Bolsonaro hoje arrependido e nas fileiras do PSDB, de centro-direita.
“A nomeação de Eduardo Bolsonaro como embaixador é o exemplo do que há de mais velho na política, nunca ninguém me dececionou tanto como Bolsonaro, tenho de passar a vida a limpar as cagadas do governo”, disse, em agosto, o ex-ator pornográfico e hoje deputado federal Alexandre Frota.
O ex-presidente do PSL, Gustavo Bebianno, fidelíssimo braço-direito de Bolsonaro em campanha ao ponto de conversarem “de cueca” em quartos de hotel, segundo imagem do próprio, também se tornou crítico após ser demitido de ministro em fevereiro, no meio de uma rede de intrigas costurada pelo segundo filho presidencial Carlos Bolsonaro. “O Bolsonaro é autoritário e os filhos do Lula não davam tantos problemas”, disse, não por acaso, ao jornal Folha de S. Paulo, o menos apreciado pelo presidente.
João Doria (PSDB), governador de São Paulo e provável candidato no campo da direita às eleições de 2022, antes do segundo turno das eleições alinhou-se ao candidato presidencial ao ponto de sugerir aos paulistas o voto “BolsoDoria”, ou seja, Bolsonaro para o Planalto e Doria para São Paulo, mas após declarações recentes do chefe de estado afastou-se definitivamente dele.
Até o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés da Silva, chamado de “mini-Bolsonaro” em campanha, considerou “uma excrescência política e jurídica” a isenção de aplicar agrotóxicos, disse que quem tem preconceitos para com LGBT deve “trabalhar para se livrar deles” e definiu como “sandice” as pessoas que “fazem arminha com a mão“.
Em entrevista ao DN, Miguel Reale Júnior, um dos subscritores do impeachment de Dilma Rousseff, chamou o presidente de “BolsoNero” e de “alucinado das trevas”. Janaína Paschoal, a outra subscritora, mesmo eleita deputada estadual em São Paulo pelo partido de Bolsonaro, também já se disse “chocada” com o presidente em mais de uma ocasião.
Líderes do Movimento Brasil Livre, um dos grupos mais ativos nas manifestações pro-impeachment de Dilma fizeram mea culpa pela sua contribuição para a polarização do pais e admitiram que não tinham como objetivo derradeiro que fosse eleito o atual presidente. “Bolsonaro não consegue gerir nem a própria casa”, disse o mais conhecido desses líderes, Kim Kataguiri, hoje deputado pelo DEM, de direita.
Na área artística, o afastamento de José Padilha, realizador dos filmes êxito de bilheteira Tropa de Elite e da série pró-Lava-Jato O Mecanismo, é em relação ao hoje ministro da justiça Sergio Moro, a quem rasgara elogios, mas de quem agora ver ações concretas que levem a uma investigação de Bolsonaro pela ligação a milícias.
Músicos, como Lobão e Fagner, e atores, como Thiago Lacerda, também fazem parte dos outrora eleitores de Bolsonaro e admiradores de Moro, hoje críticos.
Na internet, cidadãos comuns unem-se em blogs, grupos de aplicativos e sites chamados de “bolsonaristas arrependidos”, entre outros. A cada sondagem, Bolsonaro e o seu governo batem recordes negativos de aprovação para um eleito em primeiro mandato e apenas há meses no posto.
(João Almeida Moreira trabalha no Diário de Notícias, de Portugal)