Projeto dos generais que o presidente Bolsonaro adotou

Bolsonaro bate continência generais
Bolsonaro bate continência para generais durante solenidade/Arquivo/Divulgação
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Quase três anos após um tuíte direcionado ao Supremo Tribunal Federal (STF) na véspera do julgamento do ex-presidente Lula da Silva, o general Eduardo Villas Bôas revelou que o posicionamento foi redigido em conjunto com o Alto Comando do Exército. A informação, extraída de seu livro de memórias recém-publicado, provocou intensa repercussão nos últimos dias.

“Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, dizia a publicação de abril de 2018. “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”

A recente confissão de Villas Bôas, comandante do Exército entre 2015 e 2019, motivou o repúdio do ministro do STF Edson Fachin, relator do pedido de habeas corpus de Lula na ocasião. Na segunda-feira (15/02), ele afirmou que a postura de pressionar o Poder Judiciário, se confirmada, “é gravíssima e atenta contra a ordem constitucional”.

Ao antropólogo Piero Leirner, que pesquisa o meio militar há 30 anos, só causou surpresa que a revelação tenha sido mantida na edição final do livro de memórias de Villas Bôas, revisada pelo general da ativa Sergio Etchegoyen.

Em sua pesquisa, Leirner identificou um movimento claro de politização do Exército iniciado em 2007, reagindo à homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e intensificado em 2010, quando Lula enviou ao Congresso o projeto de lei que criaria a Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Na avaliação de Leirner, professor da Universidade Federal de São Carlos, Villas Bôas teve papel decisivo nessa guinada, ao alimentar a politização das tropas enquanto mantinha um discurso legalista em público.

Em “General Villas Bôas: Conversa com o comandante”, o livro de memórias organizado por Celso de Castro e publicado pela FGV Editora, o ex-01 do Exército afirma que não haveria qualquer intervenção militar caso a ex-presidente Dilma Rousseff tivesse sobrevivido ao processo de impeachment que a destituiu.

Na entrevista à DW Brasil, Leirner analisa as entrelinhas do livro de Villas Bôas. Autor do livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida, ele afirma que a preocupação dos militares com a soberania da Amazônia serve a um propósito político e tem base exclusivamente retórica, uma vez que é acompanhada por uma postura de indiferença sobre a presença de mineradoras estrangeiras na região.

Para o pesquisador, é nítido que o projeto presidencial de Jair Bolsonaro teve endosso consensual dos generais em posição de comando e foram resultado da trajetória de politização do Exército iniciada durante o governo Lula.

“O projeto Bolsonaro presidente foi uma construção de generais da ativa e reserva que se efetivou a partir de 2014 e teve o aval de todos que passaram pelo Alto Comando desde então. Não é que antes eles não tivessem projeto de poder, pelo contrário. Apenas não tinham batido o martelo que ia ser assim. Fazer campanha dentro de uma Academia Militar, além de ilegal, só pode ser obra de um consenso”, avalia.

“Ele coloca como uma necessidade, sentida lá pelos idos de 2008, de promover um salto qualitativo no Exército, adequando a Força aos cenários ou teatros de guerra que então eram pensados. Desde fins da década de 1980 o grande cenário tornou-se a Amazônia, com toda a construção de uma cadeia de percepções que imaginava a potencial ameaça à soberania da região. Aos poucos, isso foi construindo a ideia de que o Exército, como principal protagonista na área, precisaria incrementar uma diretriz baseada em guerra de resistência, assimétrica — a Biblioteca do Exército (BIBLIEx) chegou até a publicar, em 2002, uma biografia do General Giáp, herói da resistência vietnamita, que era estudada nos cursos de Estado-Maior. Quando Villas Bôas está pensando essa transformação, ele visa à arquitetura de um novo sistema que dê conta de manter essa percepção sobre as ameaças e, ao mesmo tempo, adicionar outras novas. Basicamente, vulnerabilidades em regiões de fronteira, crime, organizações criminosas, etc.

Isso é justamente o que os norte-americanos identificam como um dos elementos centrais de uma nova forma de guerra, a “guerra híbrida”. Sutilmente, nesse programa de “transformação do Exército”, viabilizado organizacionalmente por um Escritório de Projetos que ele comandou, foram pensados os termos em que essas ideias ganharam efeitos concretos. Programas como o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON), por exemplo, exigiram contatos frequentes com o Judiciário, Ministério Público Federal, Polícia Federal; busca por lobbies; ação política de militares junto ao Congresso; captação de verba etc. Finalmente, como desdobramento, as transformações produziram efeitos ideológicos e doutrinários  entre os próprios militares. Por exemplo, com a narrativa de que setores do PT eram os próprios agentes produtores de ameaças híbridas.

Assim, a transformação do Exército começou a trabalhar. De um lado, gerando matéria-prima e coesão ideológica entre os militares, para que se efetuasse uma oposição política aos governos petistas, mas parecendo uma questão militar por conta de ameaças. De outro lado, investindo em relações com setores estratégicos. Vale lembrar que, logo depois do tuíte em questão, Villas Bôas publicou outro, tão grave quanto, reafirmando a “sinergia” entre Exército e TRF-4. Além disso, ele centrou esforços em comunicação social, isto é, operações que podem ser classificadas em termos de doutrina no âmbito de uma “guerra psicológica de espectro total”.

“Toda a narrativa de generais que se aproximaram de Bolsonaro é a de que ele foi um acidente que aconteceu em 2018. Mas isso é uma “operação de dissimulação”, para usar a linguagem deles. Quando Bolsonaro ia fazer campanha nas Academias Militares entre 2014 e 2018, falando diretamente aos cadetes, isso era de conhecimento da cadeia de comando. Em 2019, o general Rêgo Barros afirmou que “(coube ao Exército) mergulhar de cabeça no ‘submundo’ das mídias sociais — Facebook, Instagram, Twitter, WhatsApp, Portal Responsivo, Eblog etc. — e se tornar o órgão público com maior influência no mundo digital no Brasil”. A declaração foi proferida na ocasião em que se despediu da chefia do Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEX), órgão responsável pelas relações públicas da Força, mas também pela cadeia de contra-informações que deveriam chegar na imprensa, como diz o próprio Villas Bôas no livro.

Hoje, todo mundo sabe o que significa manipulação de redes sociais e eleições. Não é preciso ir muito longe para pelo menos indagar o que ele quis dizer com isso. Portanto, na minha opinião, o projeto Bolsonaro presidente foi uma construção de generais da ativa e reserva que se efetivou a partir de 2014 e teve o aval de todos que passaram pelo Alto Comando desde então. Não é que antes eles não tivessem projeto de poder, pelo contrário. Apenas não tinham batido o martelo que ia ser assim. Fazer campanha dentro de uma Academia Militar, além de ilegal, só pode ser obra de um consenso”.

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