A política cotidiana, nas alturas do sistema de poder, não é tarefa de amadores e nem de inocentes
Texto de Vinício Carrilho Martinez e André César
Iniciemos com um exemplo concreto e muito recente, para explicar nosso título: nosso ocupante da Presidência da República, em visita à ONU (em Nova Iorque), entrou no hotel pelos fundos, e comeu pizza na rua.
A já icônica imagem do titular do Planalto e de seus ministros comendo pizza tem muitos significados para os seguidores de Bolsonaro, mas também suscita uma questão importante. Por que tal situação constrangedora, mais ainda se pensarmos na tradição diplomática reservada ao Brasil abrir oficialmente os trabalhos na Organização das Nações Unidas? Simples: ele não apresentou a carteira de vacina, contra a Covid-19. O único entre os chefes do G-20, diga-se.
E como se reúne, nesse exemplo, a alegação de que vivemos numa Guerra Civil na Política, atemporal e sem regras configuradas? Veremos a explicação em partes.
Em primeiro lugar, falamos de uma Guerra Civil na Política por duas razões bastante simples e lógicas, que, na verdade, podem ser resumidas a uma só: i) a política cotidiana, nas alturas do sistema de poder, não é tarefa de amadores e nem de inocentes; ii) mal conclui-se uma eleição, mesmo antes da posse, todos(as) já se preparam para “governar fazendo campanha” – a chamada “campanha permanente”.
O estilo de governança e de governabilidade em países de baixa qualidade popular inclusive e participativa ou densidade democrática, como é o caso do Brasil, define-se por mero jogo de conquista e de manutenção do poder. Por isso, por exemplo, temos partidos como o PSDB paulista há décadas no poder (mas hoje efetivamente ameaçado) ou famílias que se perpetuam pelos sertões do país: atuam, as duas constelações, como se fossem “dinastias democráticas”, uma vez que o bico de pena foi trocado pela urna eletrônica. O velho jogo sob novas formas.
Especialmente depois de 2016, do golpe apelidado de impeachment, com forte demarcação de território político em 2018 (especialmente com a entrada no palco do lumpesinato) e, indubitavelmente, em 2021 – com ameaças constantes de quebra institucional – essa verdadeira condição de Guerra Civil na Política se tornou bastante visível.
Quando se fala em guerra civil – notadamente se for como “guerra suja” – fala-se em morte. Muitos(as) poderiam dizer que não há enfrentamentos desse porte no país, como se estivessem lembrando-se de Ruanda. Porém, além do fato de termos uma série histórica, há mais de uma década, com índices de mortes violentas todos os anos, lembremos quantos foram mortos diretamente por conflitos políticos e territoriais.
Somemos a esses números todos os casos semelhantes à vereadora Marielle, no Rio de Janeiro – abatida por milicianos, em evidente crime político. E todos os negros e indígenas, pobres e trabalhadores, que sucumbem mediante o abatimento da própria dignidade. Em situação de pandemia, negacionismo e genocídio (obviamente seletivo), pode-se agregar a noção do Democídio: o extermínio parcial do povo, por razões originariamente políticas ou não. Contabilize-se ainda o feminicício – e por aí vai a lista sem fim de um tipo de antropofagia política (popular).
Essa antropofagia política, como utilizamos aqui o termo, é muito óbvia para quem revisita nossa história: está na gênese da Nação, nos séculos de escravismo, na Revolta da Vacina, nos incontáveis golpes de Estado e no contínuo descredenciamento político da classe trabalhadora. Num repente bem atual, vemos a antropofagia política ser albergada numa ação legislativa, do presidente não-vacinado, que tinha como matéria o “direito de mentir e de falar besteiras” (Fake News), sem que ele próprio ou seus seguidores sofressem qualquer tipo de admoestação. Menos ainda se viesse do Supremo Tribunal Federal, o “grande satã” do bolsonarismo.
Quer dizer, enfim, que esta Guerra Civil na Política ainda nos traz o cardápio diário da autofagia: no país do jeitinho, vale tudo, inclusive eliminar a adversidade política ou praticar o Democídio – ação rápida contra a expectativa de vida de pobres, trabalhadores(as) e de negros(as). Os excluídos de sempre.
(Vinício Carrilho Martinez é cientista social da UFSCar e André César é cientista político)