De tanto grito e delírio, as redes se transformaram em um lugar tóxico. E no mundo atual, qual é o peso da aparência?
Por Charles Machado – SC
É sempre delicioso ver quando os clássicos da literatura conversam com a ciência, onde mentes privilegiadas transforma a especulação em descoberta.
Infelizmente, as redes sociais são sempre dominadas pelos que gritam, fantasiam na disputa pela sua atenção. Faz com que milhares ou milhões repitam máxima que se desmontam em uma ou duas perguntas.
O problema é que, fake News, quase sempre, sé fruto das mentiras que muitos gostariam que fosse verdade.
Voltando a literatura, são inúmeros os caso onde ela conversa com a ciência, como Homero, para quem o firmamento era feito de bronze, a coisa mais próxima de um escudo.
A Terra ainda era plana e séculos tiveram que se passar antes de Virgílio nos presentear com uma Terra esférica e fixa, o centro do universo, onde as estrelas e a lua giravam em torno dela.
Dante pensava o mesmo, por uma razão. Virgílio era seu guia em A Divina Comédia.
A realidade espelha o teatro
Continuando com a história da literatura e sua relação com o estudo do universo, encontramos Shakespeare e os discursos lapidares de seus personagens. “Tão certo quanto eu sei que o Sol é fogo”, diz um deles em Coriolano, uma tragédia histórica com um general romano como protagonista.
Em que pese a revolução copernicana estivesse em andamento na época de Shakespeare e, com ela, o avanço do conhecimento científico, o contexto histórico em que Hamlet ocorre não é outro senão a Idade Média. Por causa disso, o Sol ainda se movia ao redor da Terra.
“Duvide que as estrelas queimem, duvide que o Sol se mova, duvide que haja verdade, mas não duvide do meu amor”, diz Hamlet a Ofélia em uma carta.
O heliocentrismo ainda não havia prevalecido e as ideias dominantes da época sobre cosmologia se refletiram na tragédia. Em todo esse texto o que percebemos é que a ciência pode andar de braços dados com a boa literatura, e por favor a boa literatura anda muito distante dos megafones das redes sociais.
De tanto grito e delírio, as redes se transformaram em um lugar tóxico. Uma das mais instigantes tragédias de Shakespeare, talvez seja, “Othelo, o Mouro de Veneza”.
Nela, uma série de valores presentes nesse momento social, onde as redes parecem dar o tom e as cores de muitas relações. Elas são impulsionadas por ciúme, traição, amor, inveja e racismo fazem da peça um debate pra lá de atual.
Estreando em 1604, o texto leva para os palcos um casamento inter-racial entre Othelo, um general mouro a serviço do reino de Veneza, casado com Desdêmona, moça de pele clara e filha de um rico senador.
Eles se uniram às escondidas e o genro só é aceito pelo sogro, porque o casamento já está consumado. Se você acha que preconceito é coisa do passado, converse melhor com seus amigos fora da bolha.
Os sinais de racismo, que escutamos em muitas rodas sociais dos prisioneiros das bolhas do ódio, também permeiam o texto, ao longo de toda peça, como em falas de Iago, inimigo secreto de Otelo….
O preconceito, nauseante, que em tempos de extremos ganha as tintas de diferença (racismo e intolerância pode ser pintado de qualquer forma, mas nunca vai deixar de ser o que é, vindo da boca de racistas).
No cinema a peça teve muitas versões, uma muito boa é de 1995, de Oliver Parker. Othelo é interpretado por Laurence Fishburne, e quem dá vida a Iago é o ótimo Kenneth Branagh. Disponível no Amazon Prime, entre outros.
A obra de Shakespeare pode render ótimas discussões sobre aparência e realidade. A começar por Iago, um dos maiores vilões da literatura. Na peça, ele é chamado de honesto diversas vezes por diferentes personagens, qualquer semelhança com os “cidadãos de bem, e homens de família”.
Valores mascarados e as aparências
Não será mera coincidência, pois fascistas são ótimos em se esconderem atrás de bandeiras dissimuladas de boa intenção. Iago, como todo racista e fascista, é pérfido, maquiavélico e sem limites.
Finge lealdade a Otelo, apesar de odiá-lo. Isso porque o general promoveu o soldado Cássio ao cargo de tenente, preterindo-o, esses hipócritas adoram um privilégio e uma facilidade.
O fato despertou em Iago uma inveja devastadora e seu grande objetivo passa a ser a destruição de Otelo. Movido por esse sentimento sombrio, ele tece intrigas que fazem o protagonista acreditar que sua esposa o trai com Cássio.
Não há provas, apenas insinuações (mais semelhanças com as fake news), que vão envolvendo o general, enlouquecendo-o aos poucos, como hoje entorpecido pela estética das redes sociais.
Cego de ciúme, Otelo mata Desdêmona e só depois descobre que ela era inocente. Então, cheio de culpa, ele se mata.
O personagem Otelo também permite essa análise. No início, ele se mostra um homem forte, viril e seguro, que acredita nos sentimentos de sua amada. Mas logo é facilmente dominado pelo ciúme e revela suas fraquezas internas, afinal o ciúme lança sua flecha negra no universo mental das dúvidas e suspeitas.
O pai de Desdêmona, senador e figura de destaque na sociedade, também mascara seus reais valores. Se a princípio exalta Otelo como líder guerreiro, em seguida o ridiculariza pelo “negrume de seu peito”, quando ele se torna marido de sua filha.
No mundo atual, qual é o peso da aparência? Levamos muito a sério a opinião dos outros a nosso respeito? As postagens nas redes sociais transmitem a imagem do que realmente somos?
Até que ponto sentir ciúme pode ser considerado normal? O desequilíbrio do personagem shakespeariano inspirou o nome de um distúrbio: a Síndrome de Otelo. As pessoas com essa doença sofrem com o delírio de que seus parceiros são infiéis.
Afinal qual o significado de cada publicação? O que cada publicação pode dizer de você? Se está disponível? Se está feliz e fazendo a vida seguir após o término? Se está magoado e não consegue ultrapassar a mágoa?
Se comprou uma nova roupa e expô-la em rede social lhe faz bem? Não importa as razões e as não razões, o universo interpretativo dos nossos gestos em redes sociais é certamente mais amplo do que possa imaginar o mais criativo dos escritores.
Em maior ou menor grau, as novas gerações são amplamente tocadas por novos padrões relacionais.
Logo o edifício da insegurança dá espaço a edificação da liquidez, onde muitos dos declarados maiores amores de nossas vidas, são incapazes de compreender as fragilidades do outro, ou de se deixar dominar por um padrão estético feito para os aplicativos de atenção.
Como se a simples curtida fosse efemeramente um sinal de afeto ou concordância?
Permitir que as redes sociais virem terra de ninguém em nome da “liberdade de expressão” é tão ingênuo como a galinha que leu o decreto que proibia a raposa de atacar as penosas.
Acreditando que apenas o decreto lhe salvava, e que não precisava do poder do estado para lhe defender a galinha saiu saltitante pela mata. Em menos de 30 minutos a raposa mostrou a ela qual é o resultado da força dos maiores sobre os menores sem a proteção da lei e seus instrumentos de coercitividade. Pobre galinha, vítima da ilusão do equilíbrio das forças.
Logo moderar redes sociais, com instrumentos eficazes é uma obrigação do estado para um ambiente menos tóxico e saudável.