Texto de Astrid Prange de Oliveira
Caros brasileiros,
Ainda se lembram da Jornada Mundial da Juventude de junho de 2013? Milhões de jovens católicos foram para o Rio de Janeiro celebrar o primeiro papa latino-americano. O clima no Rio era de festa. O “efeito Francisco” causou uma onda de euforia não só na cidade, mas nos fiéis da Igreja Católica inteira.
O papa argentino “do fim do mundo” veio para abraçar e confortar os fiéis no mundo inteiro, caçar os corruptos na Santa Sé, acabar com as intrigas no Vaticano, combater o abuso sexual de menores, e finalmente, liberar as inúmeras reformas barradas até então pela alta hierarquia do clero.
Mais poder para leigos, mais espaço para mulheres, mais perspectivas para jovens, mais abertura para homossexuais, mais acolhimento para homens e mulheres separados, mais misericórdia e perdão – essas eram as reformas tão desejadas pela base dos fiéis.
“Quem sou eu para julgar um homossexual que procura Deus?” Essa declaração do papa no final da Jornada da Juventude cativou ainda mais fiéis – não só católicos – no mundo inteiro. Um papa que não julgava, mas ouvia, que não ostentava, mas se mostrava modesto. Que maravilha!
“Esse é o papa da ruptura”, previu o teólogo Leonardo Boff. E ele tinha razão! Só que essa ruptura era e é diferente do que ele imaginava. Pois a ruptura planejada pelo pontífice ficou minúscula comparada à ruptura causada pelo escândalo do abuso sexual dentro da Igreja Católica.
Todos os grandes eventos convocados pelo papa para superar as múltiplas crises da Igreja – seja o Sínodo da Família em 2014 ou o Sínodo da Amazônia ainda este ano – desbotam frente ao tema do abuso sexual. Nesta quinta-feira (21), os chefes das conferências episcopais do mundo inteiro se encontram no Vaticano para tratar desse assunto, que é capaz de detonar os pilares da Igreja Católica.
Confesso que eu fui umas das pessoas que via nesse papa latino uma figura de esperança para os cristãos do mundo inteiro. O carisma dele e a força de sua fé eram tão poderosos que mudaram o clima angustiado no Rio de Janeiro logo depois da Copa das Confederações. De repente, ao menos durante o evento, a cidade se transformou num palco de convivência pacífica.
Seis anos depois, vejo que as expectativas e esperanças eram maiores que as mudanças efetivamente realizadas. Por mais louvável que seja permitir debates abertos na Igreja sobre assuntos considerados delicados que antes eram proibidos ou inibidos: falar não basta. Sem medidas concretas, os problemas persistem e se agravam.
O abuso sexual de menores, praticado e ocultado por décadas na Igreja em todos os continentes, abre uma ferida no coração dessa instituição milenar. Uma ferida tão profunda que até coloca em risco a sua própria existência. O sangramento dessa ferida não vai parar sem operações em várias partes do corpo católico, doa a quem doer.
Reunir os bispos católicos em Roma para “dar uma catequese”, como Francisco anunciou, não me parece suficiente. Assegurar que “a Igreja não vai se cansar de levar os culpados à Justiça e que não voltará a subestimar ou cobrir os casos de abuso sexual” tampouco.
Não adianta mais: se a Igreja Católica quiser evitar a implosão institucional, ela tem que mexer na sua doutrina moral e sexual e adaptá-la à realidade. Uma Igreja que sofre com a evasão de fiéis em massa, e uma falta grave de vocações, não pode mais se dar o luxo de barrar a ordenação de mulheres ou se agarrar no celibato.
Chega de hipocrisia! Uma Igreja que trata homossexualidade como “antinatural” e ao mesmo tempo serve como refúgio institucional para um clero que vive a sua homossexualidade clandestinamente é no mínimo contraditório – e no máximo cruel.
Uma Igreja que nega a Eucaristia a seus fiéis separados e novamente casados, mas a concede ao adúltero que continua casado é hipócrita. Uma Igreja que prega a proteção da vida e abandona as crianças geradas por seus padres que não conseguem manter o celibato não tem credibilidade.
É difícil aguentar toda essa hipocrisia em pleno século 21. É doloroso constatar que o papa “do fim do mundo”, que veio para mudar a Igreja Católica, acaba desistindo. É triste ver a decepção de fiéis no mundo inteiro que lutam tanto para manter e praticar a fé, apesar de todos os escândalos na Igreja.
Na Jornada da Juventude no Rio, Francisco pediu a todos os jovens que rezassem por ele. Será que ele ouviu o clamor? Tomara que ele se lembre das palavras do seu amigo Leonardo Boff: “Este é o papa da ruptura!”. Pois o escândalo do abuso sexual não exige nada menos que uma ruptura. Força, Francisco!
(Astrid Prange de Oliveira escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle)