Tanto lá quanto cá, o modus operandi não se modificou. Isto é, a série abominável de crimes
Por Vinício Carrilho Martinez e André Pereira César
No Direito Penal, crime continuado significa que o agente delituoso pratica dois ou mais crimes de acordo com a mesma tipologia ou “metodologia” empregada na prática criminosa: crimes semelhantes são supervenientes, sobrepõem-se.
Nossa tese, aqui, é de que o Golpe de 2016 é o start, o apito, a senha de uma série inominável, interminável de ações golpistas que se alargaram, em continuidade e em volume exponencial, até esse exato momento de 2022 – e que pode, sim, chegar a 2023.
Isso quer dizer, em outros termos, que o Golpe de 2016 – intitulado erroneamente, na análise técnica, de impeachment – nos trouxe 2018, como legado da política vencida na “mão grande”.
Pelo meio desse descaminho, em descalabro golpista contra a Constituição, decretou-se a prisão de Lula da Silva (PT), presidenciável àquela altura, como o é hoje, em 2022. Seu juiz da “lava jato”, como todos sabem, viraria ministro da Justiça daquele que só venceu a eleição de 2018 graças, precisamente, à prisão de Lula e a decretação de sua inelegibilidade.
Naquele momento traficado de poder contra a honestidade pública, ao revés do Estado de Direito (os processos foram arquivados por vícios formais tenebrosos), em sinergia com todo tido de Capitão do Mato (assombração histórica do sádico escravismo), foram estandartizados todos os sinais verdes para a continuidade golpista. O 7 de Setembro de 2021 – sob os holofotes de um blindado de guerra fumacê – acusou-se como esteio (fiasco naquele momento) de reproduções farsescas em 2022.
Em 2021 o alvo não era, exatamente, a urna eletrônica, mas sim a série de revoltas populares e o total descrédito dos indivíduos de poder. Em 2021 estava em xeque, dentre tantas outras coisas, a tentativa de “passar a boiada”; em 2022, a urna eletrônica – como porta de entrada à negação do voto livre e do resultado antecipado do sufrágio universal.
Porém, tanto lá quanto cá, o modus operandi não se modificou. Isto é, a série abominável de crimes continuados (inclusive dolosos contra a vida) é uma constante e não mera performance de poder alquebrado, ridicularizado.
Se é certo que a “5ª série chegou ao poder”, e tudo indica sua comprovação (a começar da logística do Ministério Militar da Saúde, no auge da pandemia Covid-19), é certo que tentarão outros golpes para não receber o cartão vermelho da “Tia Professora”, como atestado de ignorância e de repulsa popular.
O resultado antecipado das eleições de outubro próximo, cristalizado em todas as pesquisas sérias, é o que move a esteira dos golpes tentados à vida democrática. Porém, o que já era farsa – Golpe em 2016, facada em 2018 –, hoje é uma sacra tragédia, bizarrice, ausência absoluta de significado realista e “religiosamente armada”.
O chamamento dos embaixadores para uma exposição de ridículos e memes contra o processo eleitoral, na Alvorada – que há muito é revoada –, é tão-somente uma dessas caricaturas dos coleguinhas da 5ª série tentando aprender o jogo da política.
Até o momento, como se sabe, o resultado dessa asnice internacional foi o absurdo. Por exemplo, seria absurdo imaginarmos um urubu pastoreando, em voos rasantes na caça de ratazanas, dentro do Palácio?
Em qualquer situação de mínima normalidade, é óbvio que seria uma afronta à racionalidade: ninguém, em sã consciência, sequer faria uma ficção dessas. Não fosse pelo absurdo – o golpismo e seus crimes continuados, na série Netflix –, a realidade não nos forçaria a vivermos num nível desses de descolamento. Nossa retina não quer ver os urubus dentro do Palácio, mas eles não apenas estão lá como ainda, sobremaneira, secretam toda a cadaverina que produzem.
Essa descrição bizarra seria outra forma de caracterizar o crime continuado do Golpe de 2016, com a expansão de seus efeitos corrosivos, os mais perversos, altamente tóxicos e letais, pelo interior da sobriedade de todas as pessoas minimamente lúcidas.
Em 2017, no pós-golpe, Temer emporcalhou a Constituição, na sequência, produziu-se uma perseguição institucional aos não fascistas, pessoas cometeram suicídio, fascistas foram patrocinados e promovidos, e os urubus pulularam e se reproduziram na destruição intestina de todas as instituições decentes do país.
O urubu, coitado, é um animal extremamente necessário ao equilíbrio ambiental, no entanto, na política, significa que o escroto está tomando conta do bizarro. Para retermos uma última imagem dos urubus do poder nacional, lembremos que o urubu-animal se alimenta da decomposição, das carniças, daquilo que já é podre faz tempo; agora, pensemos no que os urubus defecam, e isso corresponde à segregação alimentar da morte. Pois é esse o resultado do golpismo continuado em nosso realismo trágico.
Infelizmente, a saída civilizatória é uma ação notadamente anti ambiental: precisamos abater rapidamente todos os urubus do Palácio. Precisamos de uma quebra institucional, de um real Estado de Exceção, mas contra o Fascismo, com imensa pressão da sociedade civil e de segmentos institucionais (dentro do Estado), em favor dos pobres e miseráveis, em defesa da democracia e da nossa própria sobrevivência.
(Vinício Carrilho Martinez e cientista Social, e André Pereira César e cientista político)