Enquanto alguns estudantes precisam gastar quatro horas no transporte público, outros gastam 15 minutos no ar condicionado do seu carro
Por Clarice Binda – DF
A ideia de meritocracia advém da tese de que “tem mais quem tem mais mérito”, como se o mérito fosse expressão exclusivamente do esforço. No entanto, tal visão não observa um grande dado de realidade da humanidade: o mérito pode ser fruto da condição privilegiada da pessoa, e não apenas do seu esforço. Mas o que isso tem a ver com justiça?
Essa tese que alguns defendem da meritocracia, principalmente aqueles com inclinações liberais e conservadoras, determina uma sociedade baseada unicamente na corrida de que quem for mais “forte” ganha, o que gera profundas desigualdades, seja econômica, social, racial, de gênero. Ora, não se pode afirmar que o ponto de partida dos indivíduos que estão em classes sociais diferentes é o mesmo.
Enquanto alguns estudantes precisam gastar quatro horas por dia no transporte coletivo para se deslocar à universidade, outros gastam 15 minutos no conforto do ar condicionado do seu carro. Daí considerar que o rendimento desses estudantes será o mesmo se houver “esforço” de cada um, é uma grande ilusão de quem, obviamente, se beneficia dessa ficção.
O último relatório da Oxfam (“As custas de quem: A origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo”), divulgado concomitantemente ao Fórum Econômico de Davos deste ano, na Suíça, deixa claro que muitos fatores que influenciam o sucesso estão fora do controle do indivíduo.
Segundo o relatório, grande parte da riqueza dos mais ricos não é fruto do trabalho deles, ou seja, do seu mérito, esforço. Mas “60% da riqueza dos bilionários de hoje vem de herança, monopólio ou conexões com poderosos”. Uma pesquisa da revista Forbes citada pela Oxfam aponta que todos os bilionários com menos de 30 anos herdaram sua riqueza.
Isso quer dizer que, o sucesso muitas vezes está ligado a quem você conhece, e não apenas ao que você sabe. Filhos de famílias influentes têm acesso a oportunidades de estágio, empregos e investimentos que não estão disponíveis para todos. Esse capital social cria uma vantagem que a tal meritocracia ignora.
E o mundo tem um exemplo claro do auge dessa falsa meritocracia: um presidente bilionário, herdeiro de um pai rico construtor, apoiado e financiado pelo homem mais rico do mundo, governando a maior economia do planeta. O mais chocante é que esse mesmo presidente discursa em defesa da meritocracia. O que é um padrão de quem se beneficia da ideia da meritocracia.
Existe uma desigualdade estrutural
Ora, é claro que a ideia de que apenas esforço e talento determinam o êxito desconsidera inúmeras variáveis como local de nascimento, saúde, preconceitos estruturais, relacionamentos, isto é, desconsidera a realidade.
Esse pressuposto irreal de que todos têm as mesmas oportunidades e condições iniciais para competir de forma justa, o que gera uma enorme desigualdade, precisa, portanto, de medidas estatais de equidade para promover a real igualdade. Em todas as Constituições modernas há menção ao princípio da igualdade, mas realizá-lo é o grande desafio dos Estados ao redor do mundo, sejam eles intitulados liberais ou sociais.
Por isso, as ações afirmativas são tão necessárias. São elas que promovem equidade e, ao longo dos anos e combinadas a outras medidas, a pretensa igualdade. Não se pode afirmar que mulheres e pessoas negras são minoria nos cargos máximos de gestão em grandes empresas, nas altas Cortes de Justiça, como o STF, porque homens brancos são mais competentes e, portanto, tem mais mérito em estar lá.
Existe uma desigualdade estrutural advinda de fatores históricos que não permitem que as condições do ponto de partida entre os indivíduos sejam iguais. O acesso à terra/moradia, por exemplo, é uma enorme vantagem neste ponto de partida.
Não podemos esquecer que os negros escravizados foram “libertados” com a negação de acesso à moradia e educação, o que, obviamente, não lhes davam condições iguais na busca por uma vida melhor, comparado aos brancos que herdaram muitas propriedades.
Da mesma forma, a permissão para que as mulheres trabalhassem sem autorização do marido aconteceu, no Brasil, somente em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/1962). Antes disso, as mulheres casadas eram consideradas relativamente incapazes e precisavam da permissão do marido para trabalhar, abrir contas bancárias ou assinar contratos.
Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em 2021, que a tese da “legítima defesa da honra” é inconstitucional e não pode ser utilizada em nenhuma fase do processo penal. No entanto, o julgamento de mérito final dessa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 779) só se deu ano passado.
Tais desigualdades estruturais, quando se olha para a história da sociedade, parecem óbvias, mas as declarações de algumas pessoas com influência política em definir os rumos das sociedades vão na contramão da obviedade. Cabe então aos poderes constituídos sob a égide destas Constituições que impõem a igualdade como princípio, fazerem do mérito medida de justiça e não de injustiça.